O Concílio de Clermont, realizado em novembro de 1095, na cidade do mesmo nome na região central da França, testemunhou a histórica convocação pelo Papa Urbano II (pontificado 1088-1099) da Primeira Cruzada (1095-1102), com o objetivo de tomar Jerusalém, das mãos dos muçulmanos que a ocupavam, em nome da cristandade. O discurso do Papa para a hierarquia da Igreja e para a multidão de laicos ali reunidos prometia, enfaticamente, a remissão dos pecados de todos os que participassem.
A estratégia de Urbano II ao absolver os cruzados de seus pecados, tornou-se extremamente popular entre a nobreza e os cavaleiros da Europa. Não surpreendentemente, tornou-se um estratagema copiado por papas subsequentes para todos os cruzados a partir de então. O Concílio de Clermont, portanto, ativou uma cadeia de acontecimentos que iria levar a uma guerra entre o Leste e o Oeste pelos próximos dois séculos e, mais ainda, um conflito que trouxe repercussões para todas as nações envolvidas até aos dias atuais.
Prólogo: Jerusalém & os Seljúcidas
Quando os muçulmanos seljúcidas, uma tribo das estepes turcas, derrotaram espetacularmente um exército do Império Bizantino na Batalha de Manzikert, na Armênia antiga, em agosto de 1071, seguiu-se uma série de eventos que levaria a séculos de guerra Oriente-Ocidente amparada em termos religiosos: as Cruzadas. Os seljúcidas criaram o Sultanato de Rum e conquistaram Edessa e Antioquia, pertencentes ao Império Bizantino, em 1078. Em seguida, capturaram Jerusalém das mãos de seus rivais muçulmanos, os fatimidas do Egito, em 1087 (a cidade encontrava-se em mãos muçulmanas desde o século VII). Alexios I Comnenos, o Imperador bizantino (reinado 1081-1118) avaliou que a expansão seljúcida na Terra Santa constituía uma excelente oportunidade para conseguir ajuda dos exércitos ocidentais em sua luta para controlar a Asia Menor e, com este propósito, enviou uma apelo diretamente ao Papa Urbano II em março de 1095. Tanto o papa como os cavaleiros ocidentais responderam com uma amplitude muito maior do que Alexios jamais poderia imaginar.
Papa Urbano II
O Papa Urbano II encontrava-se no cargo desde 1088 e já havia conseguido reputação como um reformador e patrocinador ativo da ideia de expandir a cristandade por quaisquer meios necessários. Nascido de uma nobre família da Borgonha, na França, Urbano II iria se revelar como um dos mais influentes papas na história. Papas anteriores não se afastaram de ações militares. Em 1053 o Papa Leão IX (pontificado 1049-1054) enviou exércitos para combater os normando no sul da Itália, o Papa Gregório VII (pontificado 1073-1085) lançou teorias a respeito das virtudes de uma Guerra Santa e o próprio Urbano já havia enviado tropas para auxiliar os bizantinos, em 1091, contra os nômades das estepes Pecheneg, os quais estavam invadindo a área do império no norte do Danúbio.
Urbano II estava disposto novamente a dar assistência militar aos bizantinos por várias razões. Uma cruzada para trazer a Terra Santa de volta ao controle dos cristãos era um fim em si mesma – o melhor caminho para proteger locais importantes, como o túmulo de Jesus Cristo, o Santo Sepulcro, em Jerusalém. Os cristãos que ali viviam ou que a visitavam em peregrinação também precisavam de proteção. Além do mais, havia muitos benefícios adicionais. Uma cruzada aumentaria o prestígio do Papado, pois como lideraria exércitos ocidentais conjuntos e consolidaria sua posição na própria Itália, sendo que já havia experimentado sérias ameaças dos Sacros Imperadores Romanos nos séculos anteriores, quando os papas foram forçados a se transferirem de Roma. Urbano II também esperava se tornar o chefe de uma Igreja Cristã Única, pela união das Igrejas Ocidental (católica) e oriental (ortodoxa), acima do Patriarca de Constantinopla. As duas Igrejas haviam se separado desde 1054 após um desentendimento a respeito de doutrina e práticas litúrgicas. Como uma conveniente plataforma para anunciar seus planos, Urbano II convocou um Concílio de anciãos de igrejas em novembro de 1095. O local: Clermont, no centro da França.
A Indulgência de Clermont
O Concílio de Clermont de 18-28 de novembro foi uma impressionante assembleia de 13 arcebispos, 82 bispos e 90 abades, presidida pelo próprio Papa e teve lugar na catedral da cidade. Era evidente que algo muito impactante estava para acontecer. Após nove dias de discussões e debates eclesiásticos, foram editadas 32 resoluções como a reafirmação da proibição de casamento de clérigos e, ao mesmo tempo, a autoridade da Sé de Lyons foi formalmente colocada acima daquelas de Sens e Reims. Houve, também, a excomunhão do Bispo de Cambrai e do Rei Philip I da França (reinado 1059-1108), o primeiro por vender privilégios da Igreja e o último por adultério. Tudo mais ou menos o habitual para a Igreja medieval, porém foi o édito ou cânon número 33, o último a ser editado, que iria agitar o mundo.
Em 27 de novembro a elite do clero francês e uma multidão de laicos reuniram-se em um terreno um pouco fora de Clermont para o final do Concílio. Foi ali que Urbano II pronunciou seu agora famoso discurso em uma cena obviamente ensaiada de antemão. A mensagem, conhecida como Indulgência, foi endereçada particularmente aos nobres e cavaleiros cristãos da Europa. Urbano II prometia que todos aqueles que defendessem a cristandade e tomassem Jerusalém estariam como em uma peregrinação, todos seus pecados seriam perdoados e suas almas seriam recebidas com incontáveis dádivas na outra vida. No caso de alguém se sentir preocupado, um grupo de intelectuais da Igreja havia trabalhado no assunto e concluído que uma campanha de violência pode ser justificada, tendo como referências passagens particulares da Bíblia e os trabalhos de Santo Agostinho de Hippo (354 - 430 d.C.). Posteriormente, foi dada ênfase a uma justificativa para a guerra, pois era uma luta para libertação, não um ataque, e que os objetivos eram justos e corretos. Urbano II manobrou para atingir a coragem e valentia coletivas na Europa, com a poderosa ideia que teceu em conjunto com os grandes temas da época: fervor religiosos, profunda preocupação com a vida além-túmulo, amor à peregrinação e sede por aventuras marciais entre a nobreza. A mesma combinação vitoriosa seria usada cada vez mais pelos sucessores de Urbano para conseguir amplo apoio para as muitas Cruzadas subsequentes nos próximos dois séculos.
Infelizmente, não existe nenhum documento da época esboçando o preciso conteúdo da fala de Urbano II em Clermont, exceto este pequeno resumo, extraído de um decreto do Concílio:
Seja somente por devoção, e que não se ganhe honra e dinheiro, quem for a Jerusalém para libertar a Igreja de Deus e pode substituir, por esta jornada, toda penitência” (citado em Philips, 18).
Há, entretanto, muitas fontes medievais secundárias que se referem à fala e seus conteúdos, mesmo que algumas precisem ser tratadas com cuidado pois foram redigidas após a conclusão da Cruzada. Muitas de tais fontes foram escritas por testemunhas oculares em Clermont e por cuidadosa comparação e consideração dos objetivos originais dos escritores em documentar os eventos, junto com cartas sobreviventes escritas por Urbano II, surgem certos aspectos comuns. O Papa tornou muito claro que:
- O objetivo primário era Jerusalém e defender o Império Bizantino, o secundário;
- O sofrimento dos cristãos e a profanação dos locais sagrados (ainda que exagerados para causar impacto) eram imperativos para a época;
- Os combatentes seriam recompensados, nesta vida, com recompensas materiais e, na outra vida, com as espirituais;
- A Cruzada exige que se encerrem as várias e perniciosas guerras entre os nobres europeus;
- Somente combatentes em boa forma devem responder a este chamado e suas propriedades estarão protegidas durante suas ausências.
- Abaixo um extrato de um desses relatos, escrito em 1110 por Robert de Rheims:
...Um grave relato chegou-nos vindo das terras em torno de Jerusalém e da cidade de Constantinopla... aquele povo do Reino dos Persas, uma raça estrangeira, uma raça absolutamente estranha para Deus... invadiu as terras daqueles cristãos, reduziram o povo com a espada, rapina e fogo e levaram alguns como cativos para sua própria terra, mataram outros por deplorável morte e destroçaram completamente as igrejas de Deus até o chão ou as escravizaram para a prática de seus próprios ritos...A quem caberia o trabalho de vingar tudo isto, redimir tal situação? Somente a vós.
Acabais logo com estes ódios entre vós mesmos, silenciais as disputas, interrompais as guerras e deixais todas as dissensões resolvidas. Tomais o caminho para o Santo Sepulcro, resgatais a aquela terra de uma terrível raça e dominai-a vós mesmos, pois por aquela terra, como dizem as Escrituras, onde correm o leite e o mel, que foi dada por Deus como propriedade dos filhos de Israel.
Mas não ordenamos e nem encorajamos os velhos ou enfermos ou aqueles menos adaptados com as armas, a assumir esta jornada e nem devem as mulheres seguirem desacompanhadas de seus maridos ou irmãos ou sem uma permissão oficial: tais pessoas são mais um estorvo que úteis, mais um fardo que um benefício. (Philips,210-11)
Em outro trecho, este de um relato escrito por Guibert de Nogent, talvez anterior a 1108, o foco é a respeito da recompensa de uma remissão dos pecados que tinha sido previamente disponível somente para aqueles que haviam adotado uma vida monástica:
Deus, em nosso tempo, instituiu a guerra santa para que todos os que pegassem em armas...pudessem encontrar um novo caminho para conseguir a salvação, e para que não fossem obrigados a deixar completamente o mundo, como era o hábito, adotassem o modo de vida monástico ou qualquer forma de vocação professada, para que pudessem alcançar alguma porção da graça de Deus, ao mesmo tempo desfrutando suas liberdade e vestes usuais. (Philips, 212)
Finalmente, nesta passagem de Baldric de Bourgueil (c.1105) há palavras de conforto para todos aqueles tocados pelo apelo do Papa e inspirados a assumir o perigoso desafio de guerrear em uma terra desconhecida e longínqua:
Não vos preocupeis com a futura jornada: lembrai-vos que nada é impossível para aqueles que temem a Deus, nem para aqueles que o amam verdadeiramente...cingis vossa espada, sobre vossa coxa e assim o faça cada homem. Oh! Vós mais poderoso. Cingis vós mesmos, eu digo, e agis como poderosos filhos, porque é melhor para vós morrerdes em batalha do que tolerar os abusos contra vossa raça e vossos Lugares Sagrados. (Philips,213)
O pronunciamento, não importa a exatidão das palavras, encontrou um imediato entusiasmo. Algumas pessoas da audiência acompanharam a reação do bispo de Le Puy, Adhémar de Monteil, e gritaram “Deus quer!”. O bispo, então, como certamente précoreografado, foi até ao palco e recebeu sua cruz, o símbolo do voto do cruzado, de Urbano II. A escolha da cruz como a bandeira da campanha constituiu um poderoso lembrete visual não somente da Crucificação, mas, também, como objetivo da Cruzada a Jerusalém, acompanhando o bem conhecido comando de Jesus no Evangelho de Mateus no Novo Testamento (16:24):
Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me.
Muito mais importante do que o efeito imediato na audiência em Clermont, a Indulgência, uma vez a mensagem espalhada, eletrizou a Europa medieval e viu uma extraordinária resposta com milhares “assumindo a cruz” e fazendo votos para a Cruzada da Cristandade. De fato, o pronunciamento foi algo quase excepcional e, negligenciando a recomendação do Papa, uma turba de homens inexperientes, comandados por Pedro, o Eremita, autoproclamado evangelista, foi o primeiro grupo a se dirigir à Terra Santa via Constantinopla, a chamada Cruzada do Povo. Este grupo, quase sem nenhum cavaleiro profissional foi, previsivelmente, dizimado na Ásia Menor em outubro de 1096 por um exército seljúcida.
Consequências
Após o Concílio, Urbano II escreveu muitas cartas de apelo e embarcou em uma viagem de pregação pela França durante os anos de 1095-6 recrutando cruzados, mas sua mensagem foi maliciosamente acrescida de relatos a respeito de como, naquele exato momento, os monumentos cristãos estavam sendo profanados e os cristãos perseguidos e torturados impunemente. Grandes igrejas, como as de Limoges, Angers e Tours atuaram como centros de recrutamento onde a fala de Clermont era repetida. Muitas igrejas rurais e monastérios também angariaram fundos e recrutas. Através de toda a Europa, guerreiros, estimulados pelas noções de fervor religioso, salvação pessoal, peregrinação, aventura e desejo de riqueza material, foram reunidos durante o ano de 1096, prontos para embarcar para Jerusalém. A data da partida foi estabelecida para 15 de agosto daquele ano. Por volta de 60.000 cruzados, incluindo algo como 6.000 cavaleiros, provavelmente estiveram envolvidos nas primeiras ondas.
A Cruzada teve um extraordinário sucesso. Em 1097 Nicea foi capturada e uma grande vitória foi conseguida em Doriléia. Em junho de 1098, Antioquia foi capturada após um longo sítio e um exército muçulmano com reforços derrotado. Então, a grande presa e objetivo da campanha, Jerusalém, foi capturada em 15 de julho de 1099. Outro exército de reforços foi derrotado em Ascalon em agosto do mesmo ano; Cesarea e Acre tomadas em 1101. A Terra Santa encontrava-se de volta às mãos cristãs e o Concílio de Clermont havia encontrado seu objetivo, e Urbano II, morto em 29 de julho de 1099 não conheceu seu sucesso. O truque agora era manter os ganhos, um trabalho que, apesar dos amplos recursos e o apoio de reis, iria, no final, provar ter sido muito grande para as casas reais da Europa.