Kilwa

Definição

Mark Cartwright
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 29 março 2019
Disponível noutras línguas: Inglês, francês
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Great House, Kilwa (by David Stanley, CC BY)
Casarão, Kilwa
David Stanley (CC BY)

Kilwa, uma ilha situada na costa da África Oriental, na atual Tanzânia, era o mais meridional entre os maiores centros comerciais da Costa Suaíli, que controlavam o fluxo de mercadorias chegando e saindo da África para a Arábia, Pérsia e Índia. Kilwa floresceu como uma cidade-estado independente dos séculos XII ao XV, em grande parte graças à substanciais quantidade de ouro provenientes do reino da Grande Zimbábue para o posto avançado de Sofala, no sul de Kilwa. A cidade ostentava um enorme complexo palaciano, uma grande mesquita e muitos edifícios de pedra trabalhada em seu apogeu, no século XIV. A chegada dos portugueses, no início do século XVI, significou o início do fim da independência de Kilwa, à medida que o comércio declinava e os comerciantes se transferiam para outras localidades.

A Costa Suaíli

O termo Costa Suaíli refere-se ao trecho da costa ao longo da África Oriental, de Mogadíscio, na Somália, no extremo norte, até Kilwa, no sul. Os principais portos e cidades no meio, mais de 35 no total, incluíam Brava, Pate, Kismayo, Malinde, Mombassa, Pemba, Zanzibar e Mafia. Além desses sítios principais, existem cerca de 400 outros locais antigos menores, espalhados ao longo da área costeira oriental. O termo suaíli deriva da palavra árabe sahil ("costa") e significa "povo da costa". Não se refere apenas à área costeira, mas também à língua falada na região, uma forma de Banto que surgiu em meados do primeiro milênio da era cristã. Mais tarde, muitos termos árabes foram misturados e o suaíli tornou-se a lingua franca da África Oriental, ainda que diferentes dialetos também se desenvolvessem. O suaíli continua a existir nos dias atuais na África Oriental e se tornou o idioma nacional do Quênia e da Tanzânia.

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A partir de meados do século VIII, os comerciantes muçulmanos começaram a se estabelecer permanentemente em cidades ao longo da costa suaíli.

Os povos da costa suaíli prosperaram graças à agricultura e à pecuária, auxiliados pelo regime de chuvas anual regular e pelas águas costeiras rasas e abundantes em frutos do mar. O comércio, conduzido por embarcações à vela, começou acima e abaixo desta costa, com os povos agrícolas bantos, que lá viviam nos primeiros séculos do primeiro milênio d.C., durante a Idade do Ferro da região. As viagens marítimas beneficiavam-se das longas filas de recifes de coral, que protegem as águas rasas e mais calmas entre eles e a costa, bem como as ilhas costeiras, que forneciam abrigo e pontos de parada úteis durante os trajetos. Além disso, a costa da África Oriental oferece muitos portos naturais, formados por antigos estuários fluviais submersos.

Swahili Coast Map
Mapa da Costa Suaíli
Walrasiad (CC BY)

Inicialmente habitando o interior, o povo banto gradualmente se mudou para a costa, à medida que a segunda metade do primeiro milênio d.C. avançava, criando novos assentamentos e usando pedra - tipicamente blocos de coral mantidos juntos com argamassa - em vez de, ou além de, lama e madeira para suas casas. Eles negociavam lucrativamente commodities costeiras, como joias feitas com conchas, pelos produtos agrícolas do interior mais fértil. Quando as redes comerciais se espalharam ao longo da costa, também as ideias de arte e arquitetura as acompanharam, assim como a linguagem, disseminando o suaíli até regiões mais distantes.

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Um Encontro de Dois Mundos

A partir do século VII, as redes de comércio se expandiram para incluir o Mar Vermelho (e, portanto, o Cairo, no Egito) e, em seguida, a Arábia e o Golfo Pérsico. Os dhows árabes, com suas distintas velas triangulares, lotavam os portos da costa suaíli. As atividades comerciais estenderam-se ao Oceano Índico, com a Índia e o Sri Lanka, bem como com a China e o Sudeste Asiático. Estas viagens marítimas de longa distância foram possibilitadas pela alternância dos ventos, que sopravam para o nordeste nos meses de verão e invertiam a direção nos meses de inverno.

Em seu apogeu, Kilwa provavelmente tinha uma população de cerca de 10.000 habitantes.

A partir de meados do século VIII, comerciantes muçulmanos da Arábia e do Egito começaram a se estabelecer permanentemente em cidades e centros comerciais ao longo da costa suaíli. Os bantos e os árabes se misturaram, assim como suas línguas, com casamentos mistos sendo comuns e uma mistura de práticas culturais que levaram ao surgimento de uma cultura suaíli distinta.

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Os mercadores shirazi (ou xirazes), do Golfo Pérsico, chegaram a Kilwa a partir do século XII, fortalecendo, desta forma, a influência da religião islâmica sunita e da arquitetura muçulmana. Os shirazes dominaram Kilwa por volta de 1200 através de meios pacíficos, de acordo com fontes medievais árabes - embora a cidade-estado não exercesse nenhuma forma de controle político mais amplo ou mesmo influência cultural sobre o interior do continente. Como Kilwa não tinha capacidade de produção de alimentos, porém, deve ter havido algum acordo com as tribos locais no continente.

Traditional Dhow Sailing Vessel
Veleiro Tradicional Dhow
Alessandro Capurso (CC BY-NC-ND)

A estrutura social de Kilwa e outros portos suaílis é resumida a seguir pelo historiador H. Neville Chittick:

Os habitantes dos povoados podiam ser considerados como pertencendo a três grupos. A classe dominante tinha geralmente um misto de ascendência árabe a africana [...] eram provavelmente os proprietários de terras, comerciantes, a maioria dos funcionários religiosos e os artesãos. Numa escala inferior, em termos de status, estavam os africanos de sangue puro, geralmente capturados em incursões no continente e em estado de escravidão, que cultivavam os campos e, sem dúvida, realizavam outras tarefas servis. Distintos de ambas as classes, os árabes de passagem ou recém-assentados e talvez os persas, ainda se encontravam pouco assimilados à sociedade. (Fage, 209)

Em seu apogeu, Kilwa provavelmente tinha uma população de pelo menos 10.000 habitantes, talvez o dobro disso. Era governada por um único líder, mas faltam detalhes sobre sua escolha - sabe-se de alguns casos em que o governante nomeou seu sucessor. Para a assistência do governante ou sultão havia conselheiros e um juiz, provavelmente selecionados entre as famílias de comerciantes mais poderosas.

A capacidade de Kilwa de atrair o interesse estrangeiro continuou no século XV. Em 1417, o famoso almirante chinês Zheng He (1371-1433) chegou à África Oriental numa de suas célebres sete viagens de exploração. Zheng He levou de volta para a China itens exóticos como girafas, pedras preciosas e especiarias. Os viajantes estrangeiros e os relatos que escreveram podem ser acrescentados à documentação local para aprofundar a história de Kilwa, especialmente a Crônica de Kilwa, uma história da área e suas dinastias governantes, provavelmente escrita entre 1520 e 1530.

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Comércio - Kilwa e Sofala

Para alcançar os recursos do interior da África meridional, Kilwa precisava de um entreposto comercial mais ao sul. Este veio a ser Sofala (na moderna Moçambique), fundada talvez por volta de 1300. O posto avançado suaíli do sul era importante para culturas como a da Grande Zimbábue (c. 1100 - c. 1550), no atual Zimbábue, e vice-versa. De fato, o ouro do Zimbábue que chegava a Sofala contribuiu para tornar Kilwa a mais próspera de todas as cidades da costa suaíli, ultrapassando Mogadíscio. Sofala também se tornou um centro de manufaturas, produzindo grandes quantidades de cerâmica e, em menor grau, a fundição de ferro e cobre destinados à exportação. Enquanto isso, em Kilwa, fabricava-se tecidos de algodão e havia oficinas que produziam artigos de marfim, vidro e cobre.

Kilwa Map Illustration
Ilustração com Mapa de Kilwa
George Braun & Franz Hogenberg (Public Domain)

Além do ouro, Kilwa coletava e exportava marfim, conchas de tartaruga, cobre (geralmente fundido em lingotes em forma de x), madeira (especialmente postes de mangue), incenso (por exemplo, olíbano e mirra), cristal de rocha, grãos e chifres de rinoceronte, que eram então trocados por bens de luxo exóticos, como a porcelana chinesa Ming, joias de metais preciosos, tecidos finos e contas de vidro da Índia, seda, vidraria e faiança esculpida da Pérsia. Muitos desses itens seriam comercializados no interior da África, ao longo da costa e, naturalmente, utilizados dentro da própria Kilwa. À medida que a riqueza aumentava - por meio de trocas e impostos sobre o movimento de mercadorias -, a cidade passou a fazer sua própria cunhagem de moedas de cobre a partir do século XI ou XII. O sucessor da Grande Zimbábue naquela região, o reino de Mutapa (c. 1450 - c. 1650 d.C.), no Rio Zambeze, também negociava com Sofala e trocava ouro, marfim, peles de animais e escravos por bens de luxo importados.

Arquitetura Kilwa - Husuni Kubwa

Kilwa tinha vários prédios belos e imponentes. O Palácio Husuni Kubwa ('Grande Forte', em suaíli), localizado num promontório de arenito nos arredores da cidade, tinha seu acesso feito através de uma escadaria monumental, cortada na rocha. Os edifícios, em sua maioria de apenas um andar, eram construídos usando blocos polidos, cortados das áreas rochosas naturais de Kilwa. Tratava-se de um grande complexo, que cobria quase 10.000 metros quadrados (1 hectare) e incluía uma espaçosa sala de audiências, pátio com assentos enfileirados ou degraus, tetos abobadados, depósitos (cobrindo metade da área do palácio) e uma piscina. Embora a arquitetura seja semelhante aos edifícios vistos em Áden, com suas cúpulas, pavilhões e naves, os arquitetos de Kilwa adicionaram seu próprio toque característico, ao incorporar peças de porcelana chinesa no gesso branco das paredes externas como efeito decorativo. A cobertura compunha-se de placas planas de coral, suportadas por uma densa estrutura de postes de mangue. O palácio e outros edifícios da elite dominante e rica incluíam luxos como encanamento interno.

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As paredes do palácio e as da mesquita e de uma casa apresentam outro item de interesse: vários exemplos de antigos grafites, que mostram navios mercantes árabes e locais. Um tipo diferente de escrita mural, e tão importante quanto, é a inscrição que revela o nome do governante que a encomendou, al Hasan ibn Suleiman (r. 1320-1333) e, portanto, temos uma data aproximada da construção.

Great Mosque, Kilwa
Grande Mesquita, Kilwa
Richard Mortel (Public Domain)

A Grande Mesquita

A Grande Mesquita, também conhecida como Mesquita de Sexta-feira, foi, como o palácio, construída com blocos de rocha de coral e o telhado com madeira de mangue e coral. Ao contrário das demais mesquitas na Costa Suaíli, relativamente pequenas e quase sempre sem minaretes, a Grande Mesquita de Kilwa, como o próprio nome sugere, era mais grandiosa do que a maioria. Também iniciada por al Hasan ibn Suleiman no século XIV e depois concluída sob Suleiman al Adil (r. 1412-1442), a estrutura incorporava partes de uma mesquita anterior dos séculos X e XI. Possui impressionantes colunas monolíticas de coral que sustentam um teto abobadado elevado, colunas octogonais criando 30 vãos em arco e uma sala de 4 metros quadrados, com telhado em domo. Havia, também, uma pequena câmara com teto em domo, separada do resto do edifício, para a veneração particular do sultão. Minimalista na decoração, como outras mesquitas da região, tinha muitas bossagens de coral esculpidas com desenhos geométricos bastante intrincados.

Outras Construções

Outra estrutura impressionante é o Husuni Ndogo ou “Pequeno Forte”, que consiste num grande pátio retangular com um poço de pedra completamente rodeado por um circuito de muros de arenito e apenas um portão de entrada. Não se sabe precisamente qual seria seu propósito, mas pode ter funcionado como uma hospedagem para viajantes, um quartel ou até mesmo um mercado. A cidade ostentava outras mesquitas, bem como muitos jardins pequenos e bem regados, alguns com pomares. Grandes armazéns também eram construídos com rocha de coral. A habitação doméstica normalmente consistia num edifício de pedra com dois quartos muito longos, câmaras privadas menores com vários nichos nas paredes, um pátio interno e grandes janelas. Completava-se a decoração com o acréscimo de janelas e caixilhos de portas de madeira esculpida, grades de janela ou até mesmo colocando fileiras de tigelas de porcelana no teto. Os edifícios eram construídos bem próximos uns dos outros, muitas vezes compartilhando um muro, e assim a cidade tinha ruas bastante estreitas e labirínticas. O palácio, a Grande Mesquita e a atenção geral à arquitetura levaram o explorador e viajante marroquino Ibn Battuta (1304 - c. 1368), que a visitou por volta de 1331, a descrever Kilwa como "uma das cidades mais bonitas do mundo" (citado em Spielvogel, 233).

Os Portugueses e o Declínio

O declínio de Kilwa começou com suas próprias disputas dinásticas internas e, consequentemente, a cidade já estava enfraquecida e de forma alguma preparada para a chegada ameaçadora dos portugueses. Esses europeus, com seus grandes navios à vela, procuraram estabelecer uma presença e, em seguida, o controle total do lucrativo comércio regional após a viagem de Vasco da Gama em 1498-9, quando contornou o Cabo da Boa Esperança e navegou pela costa leste da África. Além do comércio, havia outra motivação para a intervenção portuguesa: a conversão das comunidades muçulmanas ao cristianismo.

Kilwa sofreu ataques dos portugueses em 1505, o que deixou muitos de seus edifícios em ruínas. Os portugueses, a partir de sua base em Goa, na Índia, eventualmente conquistaram o controle do Oceano Índico, construindo fortalezas para mantê-lo, especialmente em Sofala (1505) e na Ilha de Moçambique, em 1507. Como consequência dessa presença, os comerciantes do interior agora conduziam seus negócios com portos suaílis mais ao norte, como Mombassa. Kilwa também teve outros problemas, como as curiosas rebeliões de tribos do interior, a exemplo dos canibais zimba, que atacaram a ilha em 1587, matando 3.000 moradores (não se sabe quantos foram comidos).

Meio século depois, por volta de 1633, os portugueses optaram por uma política mais agressiva para controlar diretamente os recursos da região e eliminar seus rivais comerciais. Eles atacaram e conquistaram uma das principais fontes de ouro, o reino de Mutapa, no Zimbábue, já enfraquecido por danosas guerras civis que causaram seu colapso interno. Em geral, porém, as redes de comércio apenas se moveram para o norte e, em qualquer caso, os europeus ficaram rapidamente desiludidos com as pequenas quantidades de ouro disponíveis na África Oriental, em comparação com a África Ocidental e o Peru inca. No século XVIII, Kilwa, agora sob controle francês, tornou-se um importante porto do comércio de escravos da África Oriental, bem como um significativo exportador de marfim. Kilwa sobreviveu parcialmente, mas Sofala se saiu muito pior e acabou sendo destruída num ataque marítimo, no início do século XX.

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Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Mark Cartwright
Mark é um escritor em tempo integral, pesquisador, historiador e editor. Os seus principais interesses incluem arte, arquitetura e descobrir as ideias que todas as civilizações partilham. Tem Mestrado em Filosofia Política e é o Diretor Editorial da WHE.

Citar este trabalho

Estilo APA

Cartwright, M. (2019, março 29). Kilwa [Kilwa]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-18052/kilwa/

Estilo Chicago

Cartwright, Mark. "Kilwa." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação março 29, 2019. https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-18052/kilwa/.

Estilo MLA

Cartwright, Mark. "Kilwa." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 29 mar 2019. Web. 23 out 2024.