Cinisca de Esparta (n. c. 440 a.C.) foi uma princesa real espartana que se tornou a primeira campeã olímpica feminina. Desafiando o papel tradicional da mulher na Grécia antiga, ela competiu nos Jogos Olímpicos da Antiguidade junto com os homens e venceu. Seu triunfo no atletismo grego tornou-se um símbolo inspirador para as mulheres das gerações futuras e um legado ainda lembrado nos dias atuais.
O Status das Mulheres em Esparta e outras Cidades-estados Gregas
É um axioma duradouro que o lugar de uma mulher na Grécia Antiga era no lar. Ali, seus deveres deveriam ser “cuidar da lareira e supervisionar as atividades domésticas, enquanto os homens concentravam-se nos assuntos mais importantes relativos à política, teatro, atletismo e assemelhados” (Miller, 150). Em termos gerais, na sociedade grega, consideravam-se as mulheres como inferiores. O filósofo grego Aristóteles afirmou que "ele poderia provar cientificamente que os corpos e mentes femininos [...] eram categoricamente, naturalmente, ou seja, inalteravelmente, inferiores aos dos homens" (Cartledge, 166). Aristóteles disse ainda que elas seriam "homens deformados", intelectualmente privadas da capacidade de raciocínio (Cartledge, 166-167).
A despeito disso, as mulheres espartanas provaram ser fortes e refutaram o famoso filósofo. Elas desfrutavam de maior liberdade do que em qualquer outra cidade da Grécia Antiga. Tinham permissão de administrar suas propriedades por direito próprio, sem um guardião masculino. Em Atenas, as mulheres eram meros veículos para produzir herdeiros masculinos para a família, enquanto que, em Esparta, elas poderiam herdar bens legalmente. Também dispunham de certas liberdades vistas como excessivas para outras cidades-estados. As esposas espartanas tinham liberdade de manter relacionamentos extramatrimoniais sem violar as leis de adultério, pois tal legislação não existia na cidade, ao contrário do restante da Grécia. Não eram obrigadas a cozinhar ou preparar comida, fazer trabalhos domésticos, fazer roupas e, presumivelmente, de amamentar as crianças. Todas estas tarefas ficavam a cargo das escravas hilotas.
A Educação Física das Mulheres Espartanas
Há mais evidências textuais e arqueológicas do envolvimento das mulheres espartanas em atletismo do que em qualquer outro aspecto de suas vidas. Na verdade, há mais evidências de atletismo feminino em Esparta do que em todo o mundo grego reunido. Este aspecto chamou a atenção de muitos autores antigos, que achavam a presença delas no atletismo muito peculiar. Xenofonte (430 - c. 354 a.C.) relata que Licurgo (século XIX a.C.) instituiu a agoge, programa educacional espartano, que incluía “treinamento físico tanto para as mulheres quanto para os homens, incluindo competições de corrida e provas de força” (Pomeroy, 12-13). O dramaturgo grego Eurípides (c. 484-407 a.C.) menciona a luta livre e corrida, enquanto Plutarco (45/50 - 120/125 d.C.) fornece um relato mais explícito em relação ao currículo e menciona luta livre, corrida, lançamento de dardo e de disco. Ainda que fossem habilidades mais adequadas para um soldado, as mulheres espartanas, de qualquer forma, tomavam parte nestas atividades. A atividade física feminina era menos árdua e seletiva se comparada com a versão masculina, mas, ainda assim, bastante semelhante.
Sarah Pomeroy declara que “as mulheres espartanas não eram treinadas para o combate real” (16). Não está claro se elas participavam de atividades atléticas junto com os homens, mas Pomeroy argumenta que, se fosse necessário, elas estariam preparadas. Filósofos como Aristóteles e Platão argumentavam que elas não eram diferentes de quaisquer outras mulheres gregas. Quando Epaminondas invadiu Esparta com seu exército tebano em 369 a.C., as mulheres fugiram aterrorizadas. Plutarco afirmou que o propósito da sua educação física era a defesa pessoal, das suas crianças e do seu país.
Os Jogos Olímpicos
As regras para a participação nos Jogos Olímpicos, bastante restritas, não favoreciam as mulheres. Considerava-se as olimpíadas como uma arena exclusivamente masculina, enquanto a participação feminina, em geral, limitava-se às atividades domésticas. Porém, os estereótipos femininos e do seu lugar no atletismo não eram tão inequívocos quanto pareciam. Nossa evidência para isso é muito fragmentária e vaga, comparada com a informação referente ao atletismo masculino. Porém, está claro que as mulheres também participavam do atletismo e "eram uma importante parte do panorama atlético, mesmo que suas competições nunca se igualassem às dos homens" (Miller, 152-153). Cinisca é um exemplo perfeito disso.
De acordo com Pausânias (c. 510 - c. 465 a.C.), as parthenoi, ou mulheres virgens/solteiras, poderiam assistir aos jogos, mas não as casadas. No entanto, isso parece improvável se houvesse a necessidade de acompanhantes para as jovens. É possível que os pais acompanhassem suas filhas aos jogos. De acordo com Sarah Pomeroy, Pausânias mencionava as parthenoi presentes “não porque eram espectadoras, mas porque participavam nas corridas em Élis” (Pomeroy, 22). Uma exceção era concedida à sacerdotisa de Deméter, que se sentava no altar da deusa durante os jogos.
As atividades equestres eram uma arena de excelência em Esparta. “Tanto mulheres quanto homens estavam ativamente envolvidos com cavalos, seja cavalgando, conduzindo veículos puxados por cavalos ou participando de eventos equestres competitivos” (Pomeroy, 19). Elas pareciam entender bem estes animais. No festival da Jacíntia, garotas espartanas "conduziam carros leves com decorações dispendiosas e tinham oportunidade de exibir suas habilidades equestres antes da comunidade como um todo. Algumas corriam em carros puxados por juntas de cavalos" (Pomeroy, 20). A familiaridade das espartanas com estes esportes tornou Cinisca uma perfeita candidata para participar dos Jogos Olímpicos. Porém, é importante ressaltar que não foi sua a ideia de competir na corrida de quadrigas (carros puxados por quatro cavalos), e sim do irmão, Agesilaus. Conforme Paul Cartledge, o objetivo de Agesilaus "era demonstrar que vitórias conquistadas desta forma seriam meramente em função da riqueza, ao contrário das vitórias em outros eventos e esferas (acima de toda, a batalha) onde a virtude contava decisivamente" (Cartledge, 215).
Cinisca
O nome Cinisca significa literalmente "filhote feminino" em grego antigo e pode soar como um apelido infantil, talvez sinônimo de uma menina que se comportava como um menino. Seu avô paterno, Zeuxidemo, tinha o apelido de Cinisco, a forma masculina de Cinisca. Seja como for, esta última denominação foi dada à primeira campeã olímpica feminina. Cinisca, irmã do rei espartano Agesilaus II e filha do rei Arquídamo e Eupolia, nasceu por volta de 440 a.C.. Como uma princesa real de Esparta, não podia ser considerada uma menina espartana comum.
De acordo com Plutarco, o rei Agesilau notou que alguns "cidadãos gregos orgulhavam-se de criar cavalos de corrida e ostentavam ares de importância em consequência e, assim, ele persuadiu sua irmã Cinisca a entrar numa equipe de carros de corrida nos Jogos Olímpicos" (Plutarco, 58). Cinisca inscreveu tão cedo quanto possível os seus cavalos e venceu em duas Olimpíadas consecutivas, em 396 e 392 a.C.. Segundo Pausânias, ela há muito queria ser bem-sucedida nos Jogos Olímpicos e se tornou a primeira mulher não somente a vencer no evento, mas também a possuir cavalos de corrida. Sua quadriga foi ostentava tanta riqueza quanto qualquer outra de seus contemporâneos vitoriosos, incluindo tiranos da Sicília. "Da mesma forma, os monumentos comemorativos de Cinisca equipavam-se em gasto conspícuo aos dos homens" (Pomeroy, 22). A princesa espartana, a exemplo dos demais proprietários de cavalos de corrida, não os conduzia pessoalmente, mas empregava um condutor. Como as mulheres não tinham permissão de comparecer às competições, ela não esteve presente ao seu próprio triunfo.
A imagem de Cinisca permanece num santuário. Apeles de Mégara desenhou uma escultura de seu carro de corrida, dos cavalos e do condutor em bronze, bem como uma estátua da própria princesa. Tais estátuas foram erguidas em Olímpia, sede dos jogos. “Foram os primeiros monumentos dedicados a uma mulher para comemorar vitórias nas competições pan-helênicas” (Pomeroy, 22).
O Epigrama de Cinisca
O autor do epigrama de Cinisca permanece desconhecido. De acordo com Sarah Pomeroy, “o poema é competente metricamente; direto no estilo ‘lacônico’; e naturalmente redigido em dialeto dórico”" (Pomeroy, 22). A própria princesa é representada declamando as palavras:
Meus ancestrais e irmãos foram reis de Esparta.
Eu, Cinisca, vitoriosa com um carro de cavalos com pernas ligeiras,
Ergui esta estátua. Declaro que sou a única mulher
Em toda a Grécia a ter vencido esta coroa. (Pomeroy, 22)
Legado
As esculturas comemorativas de Cinisca em Élis permanecem entre estátuas de homens lacedemônios e de Tróilo de Élis. Após sua morte, ela foi premiada com um santuário heroico em Esparta, com direito à veneração religiosa, localizado próximo aos Platanistas, local das disputas atléticas dos jovens espartanos. Isso complementou seu monumento vitalício erguido em Olímpia. Na Grécia, era comum para atletas serem elevados ao status de heróis e Cinisca se tornou a primeira mulher a ser tratada desta forma. Pomeroy observa que "seu santuário estava nas vizinhanças daqueles de heróis míticos, incluindo os filhos de Hipocoonte. O herôon deve ter sido construído após sua morte e servido como inspiração para outras mulheres" (23).
Seu exemplo realmente inspirou outras mulheres, especialmente espartanas, e Pausânias registra esta tendência. Algumas conseguiram obter vitórias olímpicas, mas nenhuma foi mais famosa do que ela. Como exemplo, pode-se citar a espartana Eurileone, que venceu com uma biga (carro puxado por dois cavalos) em Olímpia, em 368 a.C.. Sua estátua ergue-se junto a outros vencedores nas vizinhanças de uma casa de bronze. Cinisca e Eurileone são lembradas como as primeiras mulheres vitoriosas nas corridas de carros em Olímpia. Cerca de um século depois, foram acompanhadas por mulheres plebeias e da realeza, principalmente das cortes dos sucessores de Alexandre, o Grande.
As mulheres também conquistaram vitórias na hippikos agon, ou corrida de cavalos. Em 47 d.C., um homem chamado Hermesianax fez uma dedicatória para suas filhas em Delfos: Trifosa, que venceu na corrida a pé nos jogos Pírios e Ístmicos; Hedea, que se sobressaiu na corrida de carro “com armadura nos Jogos Ístmicos”; e Dionísia, que também conquistou vitórias nos Jogos Ístmicos (Miller, 154). Estudiosos debatem se Hedea e Dionísia participaram de competições masculinas ou em categorias especiais femininas. Porém, todos consideram estes registros como anomalias do período romano.
Embora nossas fontes sejam fragmentárias com referência à participação feminina, está claro que elas se sobressaíam em eventos atléticos, especialmente em Esparta. Neste sentido, as mulheres nem sempre estavam confinadas à esfera doméstica e ingressaram na esfera antes estritamente masculina. De fato, o legado de Cinisca serviu como exemplo para as mulheres das gerações seguintes. Numa época em que se considerava o atletismo como uma arena exclusivamente masculina, ela mostrou que as mulheres também podiam se sobressair nos Jogos Olímpicos.