Tito Flávio Josefo (36-100 d.C.), nasceu sendo chamado Yosef ben Matityahu e tornou-se um historiador judeu no primeiro século da era cristã. Ele era membro de uma família sacerdotal de Jerusalém pelo lado paterno (da casa e ordem de Joiaribe), e sua mãe era de ascendência real (Hasmoneu). Ele foi educado em Jerusalém e muito provavelmente simpatizava-se e compartilhava ideologicamente com o partido dos fariseus.
Os escritos de Josefo são crucialmente importantes para diversas disciplinas: o judaísmo do Segundo Templo no século I d.C., fontes de pesquisa para a história primitiva do cristianismo, detalhes históricos dos reis vassalos do Império Romano no Oriente e a linhagem dos imperadores Júlio-Claudianos em Roma. Nas últimas décadas do século I d.C., ele escreveu A Guerra dos Judeus (c. 75 d.C.), Antiguidades Judaicas (c. 95 d.C.), Contra Apião (c. 97 d.C.) e A Vida de Flávio Josefo (c. 99 d.C.).
Josefo e a Primeira Guerra Judaico-Romana (ou Grande Revolta Judaica) de 66 d.C.
Como membro da aristocracia de Jerusalém, em 64 d.C. Josefo viajou a Roma para negociar com o imperador romano Nero (r. 54-68 d.C.) pela libertação de alguns sacerdotes judeus que estavam sendo mantidos reféns por vários motivos. Quando ele retornou a Jerusalém, o partido dos zelotas havia convencido a maioria dos judeus a se revoltar contra Roma. Josefo foi nomeado governador militar da Galileia. Em relação à revolta, as cidades da Galileia estavam divididas, algumas aderindo à autoridade do governo romano, enquanto outras uniram-se às forças rebeldes de João de Gischala.
Com algum sucesso na organização da Galileia, todas as vitórias foram perdidas quando Nero nomeou o general Vespasiano (r. 69-79 d.C.) para invadir a região. Josefo estava sob cerco na acidentada cidade de Jotapata (Yodfat). Ele e outros 40 estavam encurralados em uma caverna. De acordo com sua própria versão da história, ele sugeriu que eles deveriam cometer suicídio coletivo ao invés de serem escravos de Roma. Eles sortearam quem deveria matar um ao outro. Restaram apenas Josefo e outro homem. Foi quando Josefo mudou de ideia e se rendeu. Enquanto esperava sua execução, ele lembrou a Vespasiano que todos os judeus tinham o dom da profecia e previu que Vespasiano se tornaria o próximo imperador de Roma.
Josefo afirmou que ele teve uma visão que explicava o desenrolar da guerra: Deus (como no passado durante as conquistas dos judeus pelos assírios e babilônios) usou os romanos para punir Israel por seus pecados. O destino estava agora ao lado dos romanos com a ajuda de Deus, e a função de Josefo era informar o que havia acontecido que desencadeou a revolta dos judeus.
A partir de então, Josefo serviu como consultor das forças romanas. Quando Vespasiano partiu para desafiar com sucesso outros candidatos após a morte de Nero, seu filho Tito (r. 79-81 d.C.) assumiu o cerco de Jerusalém. Josefo e Tito desenvolveram uma amizade próxima. Durante o cerco, Josefo implorou aos zelotas que haviam tomado o complexo do Templo e a cidade para se renderem. Em 70 d.C., o exército romano invadiu Jerusalém e destruiu o Templo e as principais partes da cidade. Josefo afirmou que Tito nunca pretendeu destruir o Templo, que teria acontecido devido a um incêndio que começou por acidente de um de seus soldados.
Após a guerra, foi recompensado por seus serviços com a concessão de uma antiga residência de Vespasiano (Tito Flávio Vespasiano) em Roma e a adoção de seu nome, juntamente com seu patrocínio. Durante sua estadia em Roma, teve acesso aos registros e arquivos romanos, dos quais pôde extrair as fontes para suas histórias.
A Guerra dos Judeus (Bellum Judaicum)
Começando com uma breve história de eventos a partir da metade do segundo século antes da era cristã até a revolta, esse livro permanece o único testemunho contemporâneo da Grande Revolta Judaica. Ele descreveu as horríveis condições do cerco a Jerusalém e o sofrimento dos hierosolimitanos devido à fome. A obra também é notável por ser a única descrição detalhada da instalação de um acampamento legionário romano (Livro III). Similar às histórias modernas, ele catalogou as razões que levaram à guerra. Dentre essas, Josefo incluiu tanto os detalhes da corrupção dos governos romanos durante os anos 50 e 60 d.C., quanto as visões fanáticas do partido zelota. Na visão de Josefo, os zelotas eram responsáveis pela maior parte da culpa pelo desastre da guerra.
O livro serviu a dois propósitos:
- detalhar a invencibilidade do poderio de Roma, talvez para desencorajar outras comunidades judaicas a se rebelar contra o império;
- prover uma apologia (uma explicação) ao público romano de que, apesar dos fanáticos zelotas, muitos judeus eram súditos leais a Roma.
O último capítulo do livro detalhou o cerco a Massada, uma antiga fortaleza às margens do Mar Morto. Depois da destruição de Jerusalém, os zelotas que haviam escapado reuniram o restante dos rebeldes em uma última resistência contra Roma. Após três anos de cerco, os romanos finalmente invadiram Massada e, ao fazê-lo, descobriram que seus habitantes haviam cometido suicídio coletivo. Nesse capítulo, o líder do grupo, Eleazar, fez um longo discurso sobre como a morte era melhor que a escravidão para Roma. O capítulo inclui questões que Josefo havia descrito em um anterior cerco em Gamla, na Galileia, que também resultou em suicídio.
A história de Massada permanece controversa entre os estudiosos porque Josefo não foi uma testemunha ocular. A retórica dos discursos reflete conceitos greco-romanos da morte nobre e pode ter sido idealizada por Josefo. O território de Massada continua a ser escavado pelos arqueologistas com o intuito de verificar a veracidade dessa história.
Antiguidades Judaicas
Talvez sua principal obra, composta de 20 volumes, Josefo forneceu uma história dos judeus e do judaísmo desde a criação até o início da guerra. A fonte para os primeiros anos foi tomada das Escrituras Judaicas, mas ele também abordou os problemas do domínio romano que levaram à revolta. É notável a ausência de detalhes sobre a maioria dos Profetas de Israel. Os Profetas previram um futuro Reino de Deus que destruiria os governantes atuais. Esse teria sido um tema politicamente incorreto a ser enfatizado para um público romano. Em vez disso, Josefo destacou a cultura e a racionalidade civilizada da Lei de Moisés, apresentando o judaísmo sob a sua melhor luz.
A obra é inestimável pela seção que descreve diversas seitas judaicas do século I d.C.: fariseus, saduceus, essênios e aqueles que se tornaram zelotas. Durante os séculos que precederam a revolta, ele descreveu vários candidatos messiânicos e seus esforços para inflamar o povo nos festivais do Templo, a fim de motivar Deus a inaugurar o Reino. Isso fornece um importante contexto histórico para as ideias que estavam em circulação durante o ministério de Jesus de Nazaré.
As Antiquidades também são importantes pelos detalhes sobre os reinos vassalos do Império Romano, particularmente o de Herodes, o Grande (c. 75-74 a.C.) e a Dinastia Herodiana. Herodes, o Grande, tinha um escrivão da corte, Nicolau de Damasco, que registrava os detalhes de seu reinado. Os registros não sobreviveram, mas foram utilizados por Josefo como fonte de muitos dos detalhes apresentados em sua obra. Assim, sabemos mais sobre Herodes, o Grande, do que qualquer outra pessoa da Antiguidade, incluindo Júlio César (100-44 a.C.). Como Josefo vivia em Roma, também obtivemos detalhes sobre a Dinastia Júlio-Claudiana dos primeiros imperadores romanos. Josefo não era avesso a relatar fofocas e escândalos.
Para os estudiosos do cristianismo primitivo, Josefo ocupa um lugar de destaque em suas descrições sobre morte de João Batista (m.c. 30 d.C.) por Herodes Agripa e em seus detalhes sobre o governo de Pôncio Pilatos (26-36 d.C.). Sua litania dos abusos de Pilatos às leis e à ordem romana na província contradiz a descrição de um Pilatos compassivo no julgamento e crucificação de Jesus de Nazaré nos evangelhos.
Uma das passagens mais controversas está no Livro 18 e apresenta uma digressão em sua descrição de Pôncio Pilatos:
Nessa época viveu Jesus, um homem sábio, se é que devemos chamá-lo de homem. Pois era alguém que realizava feitos surpreendentes e era um mestre daqueles que aceitassem a verdade de bom grado. Ele conquistou muitos judeus e muitos gregos. Ele era o Cristo. E quando, acusado pelos principais homens entre nós, Pilatos o condenou à cruz, aqueles que primeiro o amaram não pararam de o amar. Ele apareceu a eles ressuscitado depois de três dias, pois os profetas de Deus haviam predito essas coisas e mil outras maravilhas a seu respeito. E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele, ainda não desapareceu até hoje. (18.3)
Estudiosos debatem se essa passagem foi originalmente escrita por Josefo ou adicionada posteriormente por um cristão para validar as crenças cristãs. Ela se tornou mais famosa na Idade Média como prova da história de Jesus, uma vez que ela representava um ponto de vista objetivo de alguém que não era cristão. A passagem é problemática porque ela é a única referência a Jesus ou ao movimento cristão em toda a obra de Josefo. O que é estranho é o fato de que se Josefo acreditasse que Jesus era o Cristo (o messias das escrituras), deveria ter havido maiores detalhes e referências às missões dos apóstolos por todo o império. Mas após essa passagem, ele continuou a descrever mais abusos e conflitos sob o domínio romano. Alguns estudiosos modernos tentam recuperar o original eliminando as referências cristológicas, tornando-as apenas mais um relatório de um candidato ao messianismo.
Ao descrever o governo do procurador Albino (62 d.C.), Josefo incluiu a história do apedrejamento de Tiago, irmão de Jesus:
E agora César, ao saber da morte de Festo, enviou Albino à Judeia como procurador. Mas o rei despojou José do sumo sacerdócio e conferiu a sucessão dessa dignidade ao filho de Anano, que também era ele próprio chamado Anano... Mas esse Anano mais jovem era homem de temperamento ousado e muito insolente; era também da seita dos saduceus, que são muito rigorosos no julgamento dos transgressores, acima de todos os demais judeus... Anano pensou que agora tinha uma oportunidade adequada (para exercer sua autoridade). Festo estava morto e Albino estava apenas a caminho; então, convocou o Sinédrio de juízes e trouxe diante deles o irmão de Jesus, que era chamado Cristo, cujo nome era Tiago, e alguns outros, e, tendo formulado uma acusação contra eles como transgressores da lei, entregou-os para serem apedrejados. (Antiguidades, 20.9)
Anano foi destituído do cargo de sumo sacerdote por agir por conta própria antes da chegada do próximo magistrado romano. Josefo não esclareceu os detalhes da acusação de "transgressores da lei". No entanto, no século dois d.C., a história de Tiago foi ampliada para incluir detalhes de sua piedade, de modo que ele passou a ser conhecido como Tiago, o Justo. Segundo essa versão, ele foi lançado do pináculo do Templo e é considerado um dos primeiros mártires cristãos.
Vita (Vida)
Incluída no final de Antiguidades, está a biografia de Josefo. Essa não é uma verdadeira autobiografia, mas uma explicação de porquê ele ficou do lado dos romanos durante a revolta dos judeus. Provavelmente foi escrito como resposta a um tratado polêmico contra Josefo escrito por outro escritor judeu, Justo de Tiberíades. Justo havia escrito sua própria história da guerra na Galileia e culpou Josefo pela derrota dos judeus. Por sua vez, Josefo descreveu Justo como um devota zelota e, consequentemente, um traidor de Roma. Ele acusou Justo de atacar as cidades da Decápolis (do outro lado do Rio Jordão) e de instigar novas rebeliões. Nessa versão dos eventos ocorridos na Galileia, Josefo afirmou que ele era contrário à revolta desde o seu início.
Contra Apião (Contra Apion)
O título anterior deste livro era Sobre a Antiguidade dos Judeus contra os Gregos, escrito em resposta às críticas dirigidas contra os judeus. Começando com as conquistas gregas sob comando de Alexandre o Grande em 330 a.C., temos evidência que tanto a literatura judaica quanto a grega criticavam a cultura e a prática uma das outras. Apião (30 a.C.- 48 d.C.) foi um gramático egípcio helenizado que escreveu comentários sobre Homero; ele foi apenas um dos últimos a criticar o judaísmo. Os não judeus (gentios) respeitavam os judeus devido à sua antiguidade, mas os consideravam excêntricos e antissociais, uma vez que não participavam da maioria dos festivais religiosos do império.
Josefo não apenas defendeu o judaísmo devido à sua antiguidade, mas também destacou a consistente tradição que era o polo oposto dos gregos com seus muitos mitos contraditórios e o mau comportamento dos deuses da mitologia grega. Ele utilizou os ensinamentos e os preceitos da filosofia para afirmar que o judaísmo provia a mais racional forma de vida. Josefo enfatizou a ética e a moral do judaísmo contra as (típicas) acusações de imoralidade dos judeus feitas pelos não judeus.
O legado de Josefo
A partir do século XIX e depois dele, Flávio Josefo tornou-se central no movimento que ficou conhecido como a busca pelo Jesus histórico. Como principal fonte para a história e cultura do judaísmo no século I d.C., os arqueólogos referenciam as informações de Flávio Josefo em suas reconstruções de cidades e vilas da região. Em 2013, o arqueólogo israelense Ehud Netzer afirmou ter descoberto o túmulo de Herodes, o Grande, em Heródio, por meio de uma leitura cuidadosa da descrição de Flávio Josefo do território circundante.
Para estudiosos tanto do judaísmo antigo quanto do Novo Testamento, Flávio Josefo é frequentemente problemático. Cada passagem deve ser analisada à luz de seu uso literário da polêmica, bem como da tendência de Josefo à autopromoção e à apologia nos eventos que descreveu. Josefo é frequentemente analisado em comparação com os escritos e métodos de historiadores contemporâneos. No prefácio às Antiguidades, ele enfatizou a precisão histórica: “Descreverei com precisão o que está contido em nossos registros, na ordem temporal que lhes pertence... sem acrescentar nada ao que neles está contido ou tirar nada deles" (Antiguidades, Prefácio 3).
Mas, como todos os historiadores antigos, ele não se limitou estritamente aos fatos, mas incluiu a moralidade e a psicologia por trás dos atores e das ações. Nesse sentido, ele é semelhante ao historiador do século I a.C., Dionísio de Halicarnasso, que utilizou um padrão semelhante. Em sua descrição de Roma, Dionísio elogiou sua piedade e o papel da providência divina em seu sucesso. Josefo fez o mesmo para os judeus. Apesar dos problemas analíticos e debates, sem os escritos de Josefo, teríamos muito pouco acesso às pessoas e eventos de sua época.