A Papisa Joana foi uma lendária papa feminina da Idade Média que teria chefiado a Igreja de 855 a 858. Após sua história ter sido popularizada pelo escritor italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375), uma estátua dela foi colocada junto à de outros papas na Catedral de Siena. Durante a Reforma, ela foi alvo de controvérsias.
Quando o reformador tcheco Jan Hus (1372-1415) discutiu a história em seu julgamento perante o Conselho de Constância, ninguém da elite da igreja reunida ali a questionou. Martinho Lutero (1483-1546) afirmou ter visto uma estátua de Joana quando visitou Roma, em 1510. Tanto Lutero quanto João Calvino (1509-1564) utilizaram Joana para debater a doutrina católica. A estátua foi removida da catedral após a história ter sido questionada pelo escritor francês Florimond de Raemond (1540-1601).
De acordo com a lenda, Joana nasceu de pais ingleses na cidade alemã de Mainz. Ela viajou para Atenas com seu amante e disfarçou-se como um homem para receber uma educação religiosa. Distinguiu-se como erudita e elevou-se na hierarquia da igreja. Em 855, foi eleita Papa por unanimidade pelo Colégio de Cardeais. Joana acabou exposta como mulher e adúltera ao inesperadamente dar à luz durante uma procissão.
Jean de Mailly
A primeira menção ao Papado de Joana que sobreviveu é a Crônica Universal de Metz, escrita em 1255 por Jean de Mailly. Ele era um frade dominicano na cidade de Metz, na atual Lorena.
A ser verificado: Sobre um certo papa, ou antes uma papisa, pois era uma mulher. Fingindo ser um homem, foi nomeado notário da cúria por causa do seu caráter irrepreensível, depois cardeal e finalmente papa. Certo dia, quando estava montado a cavalo, ele deu à luz a uma criança. Imediatamente, pela lei romana, teve seus pés amarrados e foi arrastada pela cauda do cavalo enquanto era apedrejada pelo povo por meia légua. Quando morreu, foi enterrado com a seguinte inscrição: Pedro, Padre dos Padres, Anuncia a Parturição (parto) da Papisa [Petre, Pater Partrum, Papisse Prodito Partum]. Devido a ele foi instituído um jejum quatro vezes por ano, chamado de jejum da Papisa. (Noble, 220)
Embora Jean não informe o nome do papa em questão, o texto indica uma inscrição num túmulo ou monumento em algum lugar nas proximidades de Roma. Talvez um amigo de um amigo tivesse feito uma peregrinação e notado esta inscrição. Inscrições em latim utilizam iniciais, então esta poderia ser PPPPPP. O significado original pode ter sido alguma coisa sem relação com papisas. Uma interpretação engenhosa transformou-a numa referência a uma papisa dando à luz, por conseguinte inspirando a lenda de uma grande papisa que jamais existiu.
A frase "padre dos padres" é associada a Mitra, cujo culto era proeminente no período do Imperador Diocleciano. Se o monumento original fosse um plinto para uma estátua de Mitra, a inscrição poderia ter significado "Tenha misericórdia, padre dos padres, pago com seu próprio dinheiro" (Parce, pater patrum, pecunia propria posuit) (Noble, p. 226).
O “jejum das Quatro Vezes" refere-se aos Dias de Têmporas, isto é, Dia de Santa Lúcia (13 de Dezembro), o primeiro domingo da Quaresma, Pentecostes e Dia da Exaltação da Santa Cruz (14 de Setembro).
Martin Strebsky
A versão da história mais amplamente aceita como histórica aparece na Crônica dos Papas e Imperadores Romanos, escrita por Martin Strebsky de Troppau (atual Opava, na República Checa). A entrada relativa a Joana aparece pela primeira vez na edição de 1277. Strebsky era um dominicano em Praga e um capelão papal:
Depois de Leão [ou seja, Leão IV], John, um inglês nascido em Mainz, reinou por dois anos, sete meses e quatro dias. Ele morreu em Roma e o papado ficou vago durante um mês. Ele, como se disse, era uma mulher e quando ainda jovem foi levada a Atenas vestida como um homem por um certo amante. Ela avançou tanto nos vários ramos do conhecimento que ninguém podia equipará-la. Subsequentemente ensinou o trivium [ou seja, as três artes: gramática, retórica e eloquência] e teve grandes professores como seus discípulos e auditores. Como sua vida e conhecimento lhe granjearam uma elevada reputação na Cidade, foi eleita papa por unanimidade. Mas, enquanto papa, ela foi engravidada pelo seu amante. Desconhecendo quando ocorreria o parto, quando ela se dirigia de São Pedro [Basílica de São Pedro] para Latrão [Basílica de Latrão], deu à luz numa estreita passagem entre o Coliseu e São Clemente e, após sua morte, conforme tem sido relatado, foi sepultada neste mesmo lugar. Como o senhor papa sempre evita esta rua, muitos acreditam que isso acontece devido à sua abominação por este evento. Ele não aparece no catálogo dos pontífices sagrados por causa da deformidade do sexo feminino aplicada a esta questão. (Noble, 222)
Strebsky nos fornece uma segunda base para a história, uma rua alegadamente oculta entre o Coliseu e a Igreja de São Clemente. Esta igreja é construída num mithraeum, uma caverna utilizada anteriormente para o culto a Mitra. Esta rua foi bloqueada por um período durante a Idade Média, o que poderia explicar o desvio do papa.
O fato de tanto Jean quanto Strebsky serem dominicanos pode ser significativo. A ordem recusou-se a devolver um priorado em Gênova para a família do Papa Inocente IV (r. 1243-1254). Em 1254, o papa retaliou com um decreto restringindo os direitos dos dominicanos de pregar e ouvir confissões. Os dominicanos recitaram litanias e o papa sofreu um derrame, morrendo poucas semanas depois. Isso levou à expressão "Cuidado com as litanias dos dominicanos".
Strebsky nos conta que Joana estudou em Atenas. No século IX, a cidade foi arrasada por bárbaros e não tinha escolas. O autor pode ter se inspirado em Agnodike, uma lendária mulher grega que se vestiu de homem para estudar medicina em Atenas no século IV a.C..
Boccaccio
O escritor florentino Boccaccio produziu a versão da história de Joana com a qual os povos medievais provavelmente estavam mais familiarizados. Na obra Sobre Mulheres Famosas (1362, De Mulieribus Claris), ele a colocou junto a deusas e outras figuras míticas, portanto não houve tentativa de ocultar que a história fosse ficção, ou ao menos ficcionalizada. "Joana, uma inglesa e papa,", é como Boccaccio a descreveu. Ela foi "estimulada pelo demônio que a conduziu a essa perversidade e a fez persistir nela" (231-232).
Ainda assim, Boccaccio não era de todo antipático a Joana. Ela "tinha uma mente aguçada e era atraída para os encantos do conhecimento", era "muito virtuosa e santa" e "considerada por ter se sobressaído a todos os outros", além de "ensinar o trivium", a versão medieval de um professor de escola secundária (231-232). Este padrão de abundante louvor alternado com passagens nas quais deleita-se com a humilhação alheia é típico de como Boccaccio lida com as mulheres em sua obra. Por volta de 1400, a história estava suficientemente popularizada para dar a Joana o reconhecimento como um verdadeiro papa, com direito a uma estátua na Catedral de Siena.
Reforma
Quando os protestantes questionaram a autoridade do papa durante a Reforma, os católicos responderam apelando para a doutrina da sucessão apostólica. Ela consiste na ideia de que a autoridade do papa é confirmada por uma linha contínua que recua até o apóstolo Pedro. Roma é uma das três sedes apostólicas, junto com as igrejas da Antioquia, também fundada por Pedro, e de Alexandria, fundada por São Marcos.
Um Papa do sexo feminino iria contra várias injunções bíblicas. "E não permito que a mulher ensine, nem que exerça autoridade sobre o homem", escreveu Paulo a Timóteo (I Timóteo, 2:12). "O seu desejo será para o seu marido, e ele a governará", Deus disse a Eva (Gênesis, 3:16). Porém, Timóteo foi ensinado por sua mãe, Eunice, e por sua avó, Loide. Débora foi uma profetisa e uma juíza de Israel e ela derrotou os cananeus guiada por Deus, e não por seu marido: "O Senhor entregará Sísera nas mãos de uma mulher” (Juízes, 4:9).
"Não estava a igreja sem uma cabeça e sem um governante durante os dois anos e cinco meses em que Joana ocupou a Sé de Roma?", Hus indagou no Conselho de Constança, em 1415 (Stanford, Cap. 10). Ele continuou a utilizar Joana como um exemplo de pecado e erro. A mera eleição não pode ser suficiente para fazer um papa, argumentou Hus. É preciso ser merecedor. O conselho não se impressionou e condenou Hus à morte. Se tivesse havido uma papisa, não seria possível uma linha contínua de sucessão, argumentavam Lutero e Calvino. Mesmo que se ignorassem os papas heréticos, não se poderia nunca "saltar sobre a Papisa Joana", afirmou Calvino (Rustici, 40).
De acordo com uma história que é realmente boa demais para ser verdade, Joana inspirou a igreja a incluir um ritual à cerimônia de coroação do papa para prevenir outra candidata feminina de escapar à detecção. Os papas eram coroados numa enorme cadeira de mármore púrpura, chamada de Cadeira Estercorária. Esta cadeira tinha uma abertura, como num assento de toalete, que permitia a um cardeal verificar se o novo papa era realmente do sexo masculino. Após o exame, ele anunciaria Duos habet et bene pendentes (“Ele tem dois e estão pendentes”).
Desvendando o Mito
O magistrado de Bordeaux e escritor Florimond de Reaemond desvendou a história de Joana, ao menos em relação às preocupações dos católicos, na obra Erreur Populaire (Erros Populares). A primeira edição foi publicada em 1587, com 40 páginas. Edições maiores foram publicadas em 1588 e 1594, o que sugere haver um enorme interesse público no tema. Florimond mostrou que uma crônica de 1082 de Marianus Scotus havia sido alterada para incluir uma referência a Joana. Isso significava que a mais antiga referência autêntica fora feita quatro séculos depois do suposto evento. Quanto à história da cadeira perfurada, era "tão grosseira" que a única resposta apropriada seria o riso, escreveu Florimond (Tinsley, 391). Ele fez uma campanha contra a estátua em Siena, que acabou por ser removida em 1601 e substituída por uma do Papa Zacarias (r. 741-752).
Entre os protestantes, os esforços de Florimond tiveram o efeito oposto. A edição de 1594, com 200 páginas, chegou a terras distantes, incluindo a Inglaterra. Isso deu à estátua de Siena uma atenção que de outra forma não teria recebido: sua remoção levou à suspeita de que os católicos estavam destruindo evidências. Com sua própria legitimidade como uma governante feminina questionada, o reinado de Elizabeth I (r. 1558-1603) não era talvez a melhor ocasião para trazer este tema à baila. John Jewel, o bispo de Salisbury (1560-1571), escreveu panfletos que fizeram de Joana parte da propaganda oficial antipapal.
O clérigo protestante francês David Blondel (1591-1655) redigiu uma tese desvendando Joana em 1647. Poucos protestantes deram-lhe atenção, mas ele obteve uma entusiástica crítica do historiador britânico Edward Gibbon, mais de um século depois. A Papisa Joana "foi aniquilada por dois eruditos protestantes, Blondel e Bayle", escreveu Gibbon em 1776. Para o historiador, o fato de que a história tenha sido repetida em tantos manuscritos mostra que era considerada extraordinária e, portanto, menos crível. "Os defensores da Papisa Joana produziram centro e cinquenta testemunhas, ou antes ecos, dos séculos XIV, XV e XVI", acrescentou (Gibbon, Vol. 8, Cap. XLIX).
O Papa Leão IV ocupou o cargo de 847 a 855, enquanto Benedito III chefiou a Igreja de 855 a 858, não deixando nenhuma lacuna para Joana, de acordo com Noble. Existe uma moeda com Benedito de um lado e o imperador franco Lothar I no outro. Isso significa que ela foi lançada quando ambos estavam reinando. Lothar morreu em Setembro de 855, logo a moeda confirma que Benedito era o papa naquele ano.
Tarô
A carta da papisa no baralho do tarô naturalmente traz à mente a figura de Joana. A carta original fazia parte de um baralho fabricado para os Visconti-Sforzas, a família dominante de Milão, em meados do século XV. As cartas neste baralho não contêm legendas, mas a mulher se parece com imagens da Mãe Igreja comuns nessa época. ("'Papisa' como uma alegoria".)
O nome papisa apareceu no baralho de Jean Noblet, datado de 1650. Esta denominação faz a carta ser complementar à carta do papa. O baralho de Jean Dodal (1701) chama esta carta de "Las Pances" (a barriga). É uma referência à mulher grávida do Apocalipse 12:1-2, interpretada como a Mãe Igreja. No baralho de Rider-Waite de 1909, a carta é descrita como "alta sacerdotisa". Mas a Lua crescente sob seus pés é do Apocalipse.
Interesse Duradouro
Há mais de 700 anos, Joana tem sido um tema popular para gerações de escritores. Autores protestantes usaram Joana para minar a autoridade papal. No Renascimento, ela representou o atraso e a superstição medievais. No romântico século XIX, simbolizou a jubilosa liberação dos papéis tradicionais, de acordo com Noble.
Uma versão cinematográfica da vida de Joana foi lançada em 1972, com direção de Michael Anderson e protagonizada por Liv Ullman. Recebeu críticas terríveis. Em 1996, Donna Woolfolk Cross reviveu a lenda com o romance Papisa Joana. Em 2009, o diretor alemão Sönke Wortmann fez um filme vagamente baseado no romance. (A Alemanha sempre esteve no centro do culto à Papisa Joana.) Boccaccio explicou o crossdressing [prática de vestir roupas do sexo oposto] de Joana como motivado pelo desejo de acompanhar o amante e "suavizar suas paixões libidinosas". Quando o amante morreu, ela teria ido a Roma para atuar como professor e, mais tarde, como notário da cúria. Em contraste, o filme mostra Joana usando uma vestimenta masculina para sua segurança pessoal, após um ataque viking.
Não mais uma vilã louca por sexo, a Joana moderna heroicamente ascende ao topo em desafio à misoginia. Sua proeminência atual não é a mesma do século XIX. Mas ela ainda se encontra entre os dez papas mais citados em menções no Google Books, eclipsando a vasta maioria dos 266 papas que realmente existiram.