
Os Contos de Guerra (gunki monogatari) são um gênero de produção escrita histórica que se desenvolveu no Japão do Período Heian (794-1185) ao Período Muromachi (1333-1573). Eles formam um elemento importante no desenvolvimento da tradição literária japonesa, pois fornecem informações sobre várias guerras do Japão e são uma fonte importante de histórias que foram reutilizadas e popularizadas por gerações de escritores e dramaturgos subsequentes.
Historicidade
Durante o Período Nara (710-794) e a primeira metade do Período Heian, aristocratas da corte imperial dominavam o governo do Japão. No entanto, perto do fim do Período Heian, o poder da corte entrou em declínio, e grande parte do país passou a ser controlado por clãs de guerreiros. Na segunda metade do século 12, uma guerra irrompeu entre dois desses clãs, os Taira e os Minamoto. O clã Minamoto saiu vitorioso e, em 1185, seu líder, Minamoto no Yoritomo (1147-1199), criou seu próprio governo militar (chamado de bakufu em japonês) que competia com a corte imperial pelo poder. Esse governo tinha sua base em Kamakura (perto da atual Tóquio) e era chamado de Bakufu Kamakura.
No final do Período Kamakura (1185-1333), o Imperador Go-Daigo, que queria reafirmar a autoridade imperial, contou com o apoio de uma família guerreira rival chamada Ashikaga e destituiu o Bakufu Kamakura. De 1333 a 1336, Go-Daigo governou. Esse período é chamado de Restauração Kenmu. Porém, em 1336, o líder dos Ashikaga, Ashikaga Takauji, abandonou Go-Daigo e criou um novo bakufu centrado no distrito Muromachi, em Kyoto. Go-Daigo fugiu para Yoshino (na atual Prefeitura de Nara), e Takauji nomeou um novo imperador em Kyoto. Por cerca de 60 anos, houve brigas esporádicas entre as cortes rivais “do norte” e “do sul”. Em 1392, a Corte do Sul foi enganada e se submeteu a Corte do Norte, e assim a disputa chegou ao fim.
Os Contos de Guerra buscam, em grande parte, descrever esses acontecimentos. Por muitos séculos, acreditava-se que os contos eram narrativas precisas, escritas por observadores contemporâneos, ou quase-contemporâneos. Mas historiadores modernos mostraram que esse não é o caso. Os Contos de Guerra podem ser descritos da melhor forma como “histórias literárias” que combinavam alguns fatos com bastante ficção. Isso não diminui a importância deles, mas significa que o conteúdo não deve ser visto como verdade absoluta. Apesar de uma vez terem achado que os contos refletiam atitudes reais dos guerreiros, hoje acredita-se que, na verdade, as narrativas fictícias das batalhas tiveram um papel em criar essas atitudes nos guerreiros de gerações posteriores. Ideias populares sobre o bushido, “o caminho do guerreiro” ou um “código de conduta dos samurais”, também se originaram desses contos ao invés de serem relatos objetivos do comportamento dos guerreiros.
Os Contos de Guerra mais importantes são:
- Hogen Monogatari – uma narrativa sobre a Rebelião de Hogen em 1156
- Heiji Monogatari – uma narrativa sobre a Rebelião de Heiji em 1159-60
- Heike Monogatari – uma narrativa sobre a Guerra Genpei entre os clãs Taira e Minamoto em 1180-85
- Soga Monogatari – uma narrativa sobre a vingança dos irmãos Soga em 1193
- Gikeiki – uma obra focada na vida de Minamoto no Yoshitsune, 1159-89
- Taiheiki – uma narrativa sobre a disputa entre a Corte do Norte e a Corte do Sul no século 14.
Alguns desses contos começaram como textos escritos, enquanto outros eram transmitidos através da tradição oral e só foram escritos depois. Essa tradição oral consistia nos contos sendo recitados por pessoas chamadas de biwa hoshi. Os biwa hoshi eram padres cegos itinerantes que contavam histórias com um tipo de alaúde chamado biwa. Heike Monogatari é um exemplo desse tipo de texto.
Heike Monogatari
Heike Monogatari é conhecido em português como O Conto dos Heike. É o conto de guerra mais famoso e está disponível em inglês como Tale of the Heike. É uma narrativa sobre a Guerra Genpei entre os clãs Taira e Minamoto. Devido a uma confusão com as diferentes leituras dos caracteres chineses nos nomes dos clãs, os Taira também são conhecidos como Heike, e os Minamoto também são conhecidos como Genji.
A história é profundamente influenciada pelas ideias budistas de karma e mujo, a impermanência de todas as coisas. As frases de abertura estão entre as mais famosas da tradição literária japonesa:
O som dos sinos Gion Shōja ecoa a impermanência de todas as coisas; a cor das flores do sāla revela a verdade de que os prósperos deverão declinar. O orgulho não endurece, é como um sonho em uma noite de primavera. Os poderosos caem no final, são como poeira perante o vento. (McCullough, The Tale of the Heike, 23)
Não se sabe quem foi o autor original de Heike Monogatari e o conto existe em muitas versões diferentes. A versão mais utilizada é datada de 1371, cerca de 200 anos após os eventos narrados na história. Em seu relato de várias batalhas, os guerreiros demonstram todas as características que hoje são consideradas ideais dos samurais: lealdade a uma pessoa, vontade de sacrificar a própria vida pelo seu senhor, e determinação para lutar até uma morte digna ao invés de desistir pelo inimigo ser mais forte. O problema é que, em versões mais antigas do conto, esses relatos não aparecem ou são diferentes. As primeiras versões da história são muito mais curtas e focadas nos fatos. Isso sugere que os aspectos mais heroicos da história são embelezamentos fictícios adicionados depois pelos biwa hoshi a fim de deixar as performances mais divertidas. No entanto, por muitos séculos, as pessoas acreditaram que essas adições eram reais.
Taiheiki
Taiheiki é uma narrativa sobre a guerra entre a Corte do Norte e a Corte do Sul no século 14. O nome significa algo como “A Crônica da Grande Paz”, o que é estranho já que é basicamente uma história de guerra. Esse conto também existe em diferentes versões, mas todas são relativamente parecidas e, diferente de Heike Monogatari, nunca foi recitada e embelezada pelos biwa hoshi.
O Taiheiki é dividido em três seções:
- Livros 1-12: da ascensão do Imperador Go-Daigo em 1318 até a destituição do Bakufu Kamakura e o início da Restauração Kenmu em 1333.
- Livros 13-21: de 1333 até a morte de Go-Daigo em 1339.
- Livros 22-40: da guerra entre a Corte do Norte e a Corte do Sul e das disputas no Bakufu Ashikaga até a morte do segundo xogum Yoshiakira em 1367.
Devido às inconsistências no texto, diferentes partes do Taiheiki parecem ter sido escritas por diferentes pessoas. Por exemplo, a primeira seção apoia bastante Go-Daigo, mas a segunda seção o critica. A terceira seção é a parte mais incoerente, com muitas descrições repetitivas das batalhas intercaladas com relatos sobrenaturais de fantasmas e demônios.
Em sua representação dos guerreiros, o Taiheiki possui muitos dos temas encontrados em Heike Monogatari, só que mais elaborados. Em Heike Monogatari, lealdade é considerada uma grande virtude, mas em Taiheiki, a lealdade a família imperial é especialmente exaltada. Ashikaga Takauji é visto como um grande vilão, pois ele apoiava o imperador Go-Daigo no começo, mas depois o traiu. Em contraste, o guerreiro Kusunoki Masahige é retratado como um herói, pois sacrificou a própria vida por lealdade a Corte do Sul, mesmo sendo uma causa perdida. Em séculos subsequentes, o leal herói fracassado se tornou um dos tropos mais populares da literatura japonesa. Outro tema proeminente no Taiheiki é a escolha dos guerreiros de morrer pelas próprias mãos ao invés de serem capturados ou mortos pelo inimigo. No Taiheiki, a morte é glorificada e, às vezes, isso é levado a extremos bizarros quando, por exemplo, dois guerreiros se matam ao cortar as cabeças um do outro. Guerreiros cometendo seppuku é mencionado em contos de guerra mais antigos, mas, no Taiheiki, isso se torna uma das principais características do comportamento dos guerreiros. Há, no entanto, pouca evidência de outras fontes de que isso era realmente uma prática comum, exceto quando a morte nas mãos do inimigo era praticamente uma certeza.
Impacto
As narrativas ficcionalizadas das guerras japonesas nos Contos de Guerra influenciaram muito a forma como as gerações posteriores viam o comportamento dos guerreiros. Um dos melhores exemplos disso é uma história curta da seção três do Taiheiki sobre um guerreiro provincial chamado En'ya Hangan. Um dos representantes do xogum Ashikaga Takauji, Ko no Moronao, cobiçava a esposa de Hangan, mas quando foi rejeitado, ele disse a Takauji que Hangan estava planejando uma rebelião. Hangan tentou fugir com sua família e vassalos para sua província natal, mas foi perseguido pelos homens de Takauji. A esposa de Hangan foi morta, e ele cometeu suicídio. Antes de morrer, Hangan rezou para que ele renascesse sete vezes, para que pudesse ser inimigo de Ko no Moronao de novo e de novo.
Esta é uma história relativamente sombria, e não há evidência além do Taiheiki de que realmente aconteceu. Porém, no século 18, ela ficou famosa quando foi usada como parte do enredo de uma peça chamada Chushingura. Foi traduzida para o inglês como “A Treasury of Loyal Retainers” (O Tesouro dos Leais Vassalos, em tradução livre), mas é mais conhecida como “Story of the Forty-Seven Samurai” (A Lenda dos 47 Samurais, em tradução livre). Na peça, após a morte de Hangan, alguns de seus vassalos armaram um plano para se vingar de Ko no Moronao. Eles esperam vários anos até que ele abaixasse a guarda, então atacaram sua mansão durante a noite. Ele foi degolado, e sua cabeça foi levada para o templo onde Hangan estava enterrado e apresentada como oferenda. Com seu objetivo cumprido, a peça acaba com os guerreiros se preparando para cometer seppuku.
É provável que esse incidente tivesse sido totalmente esquecido se não fosse pelo fato de ter sido usado como base para o Chushingura, a peça mais famosa na história do teatro japonês. O Chushingura, que também possuía elementos de um escândalo contemporâneo chamado Incidente Ako (1701-3), é um bom exemplo do modo como os episódios dos Contos de Guerra eram adaptados conforme novas formas de arte se desenvolviam. Ele foi performado pela primeira vez em 1748, como uma peça bunraku. O bunraku era uma nova forma de teatro do período Edo (1603-1867). Nele, cada boneco tem cerca de metade do tamanho da uma pessoa real e é operado por três titereiros. Os titereiros estão à vista da audiência, mas vestidos de preto para indicar sua invisibilidade. Um narrador senta na lateral do palco e recita a história, incluindo as falas de todos os personagens.
O dramaturgo mais famoso de peças bunraku era um homem chamado Chikamatsu Monzaemon (1653-1724). Ele se inspirava bastante em histórias dos Contos de Guerra para fazer suas peças. Por exemplo, ele escreveu doze baseadas somente em Soga Monogatari. Em português, o conto é conhecido como História dos Irmãos Soga. Ele descreve um evento que aconteceu em 1193 EC, no qual os irmãos Soga se vingaram de um vassalo do xogum Yoritomo no Minamoto (1147-1199) que eles consideravam ser responsável pela morte do pai. Esse incidente não teve importância politicamente, mas por muitos séculos foi considerado o arquétipo de kataki-uchi, a busca por vingança pela morte de um parente de sangue. Esses tipos de ataque por vingança não parecem ter sido particularmente comuns entre guerreiros de verdade, mas se tornou um tema popular entre dramaturgos do período Edo.
Conforme cada geração nova chegava, histórias dos Contos de Guerra eram reformuladas e novos elementos eram adicionados. Esse processo continua até hoje, já que são regularmente utilizadas em filmes e séries de TV, mesmo que os contos em si sejam uma leitura tediosa.