Chushingura

Definição

Graham Squires
por , traduzido por Letícia Amboni
publicado em 30 setembro 2022
Disponível noutras línguas: Inglês, francês
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Chushingura (by Ando Hiroshige, Public Domain)
Chushingura
Ando Hiroshige (Public Domain)

Kanadehon Chushingura (O Tesouro dos Retentores Leais ou A Lenda dos 47 Samurais, em tradução livre) é a peça mais popular da história do teatro japonês, performada pela primeira vez em 1748. É uma obra fictícia, mas os detalhes da história são frequentemente confundidos com os de um evento real, o Incidente Ako (1701-3), no qual muitos pensam que a história se baseia.

Ascensão do Teatro de Bonecos

Após a fundação do xogunato Tokugawa no começo do século 17, a paz se instaurou no Japão depois de um século e meio de guerra civil. A população cresceu rapidamente e as cidades se expandiram. Edo (atual Tóquio) e Osaka cresceram especialmente rápido e, nessas cidades, um novo tipo de cultura urbana que refletia os valores dos cidadãos se desenvolveu. Isso incluía duas novas formas de teatro. Uma foi o kabuki, que usava atores, e a outra foi o bunraku, uma forma de teatro com bonecos. Na tradição europeia, bonecos são considerados entretenimento para crianças, mas no Japão, o teatro de bonecos se desenvolveu como uma forma de arte altamente refinada.

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Em sua maturidade, o bunraku utiliza bonecos com cerca de metade do tamanho de uma pessoa real, e as partes de seu rosto podem se mexer. Três titereiros, vestidos em preto para indicar que não devem prestar atenção neles, manipulavam os bonecos no palco. Na lateral do palco sentava uma pessoa que recitava a história, incluindo todas as falas, com o acompanhamento de um instrumento musical chamado shamisen. Apesar do kabuki e do bunraku serem vistos atualmente como teatro “clássico”, no período Edo, eles eram uma forma popular de entretenimento para as pessoas, assim como as séries de TV são hoje.

Era de Ouro do Bunraku

Jidaimono eram peças históricas geralmente baseadas em eventos conhecidos do passado do Japão.

O dramaturgo mais famoso dessa época era um homem chamado Chikamatsu Monzaemon (1653-1724). Ele escrevia dois tipos diferentes de peças. Jidaimono eram peças históricas geralmente baseadas em eventos conhecidos do passado do Japão. Para o conteúdo dessas peças, ele se baseava bastante em lendas e histórias da literatura clássica japonesa, como os Contos de Guerra. Por exemplo, ele escreveu doze peças baseadas somente em Soga Monogatari. Esse conto de guerra do século 13 descrevia como os dois irmãos Soga passaram 17 anos buscando vingança contra a pessoa que matou o pai deles.

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Em contraste aos dramas históricos estavam o sewamono, dramas domésticos centrados nos eventos da vida de pessoas comuns daquela época. Nesse gênero, ele escreveu várias peças sobre “suicídio de amor”, nas quais casais acabavam se matando por não poderem ficar juntos por algum motivo. As mais famosas dessas peças eram Sonezaki Shinju (Suicídios de Amor em Sonezaki, 1703) e Shinjuten no Amijima (Suicídios de Amor em Amijima, 1721). A partir dos anos 1710, surgiu a tendência de combinar esses dois gêneros. A peça seria baseada em alguma figura ou evento histórico, mas incluiria episódios românticos do tipo que apareciam em dramas domésticos. Essas peças não tentavam ser precisas historicamente, já que eram apenas para entretenimento.

Nos anos 1740, uma equipe de dramaturgos formada por Takeda Izumo (1691-1756), Namiki Sosuke (1695-1751) e Miyoshi Shoraku (1696-1777) produziu três das maiores peças bunraku:

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  • Sugawara denju tenarai kagami (Sugawara e os Segredos da Caligrafia, 1746), recontando a vida de Sugawara no Michizane (845-903), cortesão e estudioso do período Heian (794-1185).
  • Yoshitsune senbon zakura (Yoshitsune e as Mil Cerejeiras, 1747), sobre a vida de Minamoto no Yoshitsune (1159-1189), um guerreiro que viveu no século 12.
  • Kanadehon chushingura (O Tesouro dos Retentores Leais, 1748), uma história que se passa no século 14, na época da disputa entre as Cortes do Norte e do Sul.

Chushingura

A ambientação, os personagens e a base da história de Chushingura vêm de uma história que aparece no Taiheiki, um conto de guerra escrito no fim do século 14. Essa história conta como o representante do xogum Ashikaga Takauji, Ko no Moronao, um homem famoso por sua ganância e depravação, desejava a esposa de um guerreiro provincial chamado En'ya Hangan. Quando ela o rejeitou, ele disse a Takauji que Hangan estava planejando uma rebelião. Hangan tentou fugir com sua família para sua província natal, mas foi perseguido pelos homens de Takauji. A esposa de Hangan foi morta, e ele cometeu seppuku (ritual suicida). Antes de morrer, ele rezou para que renascesse sete vezes, para que pudesse ser inimigo de Ko no Moronao de novo e de novo.

Taiheiki
Taiheiki
Yashima Gakutei (Copyright)

Em Chushingura, a história é embelezada da seguinte maneira. Ko no Moronao deseja a esposa de En'ya Hangan. Ela o rejeita, mas seu marido é provocado até atacar Moronao. O xogum ordena que Hangan cometa seppuku como punição, e ele obedece prontamente. O líder dos retentores de Hangan, Yuranosuke, passa meses planejando se vingar de Moronao com seus companheiros. Finalmente, eles atacam a mansão de Moronao à noite e o matam. Eles marcham para o templo onde Hangan foi enterrado e oferecem a cabeça de Moronao como oferenda. A peça acaba com os conspiradores se preparando para cometerem seppuku, satisfeitos por terem demonstrado sua lealdade ao seu falecido senhor ao se vingarem de Moronao.

Dramaturgos inseriram alguns elementos de um evento contemporâneo real na história para deixá-la mais interessante.

Conforme era comum na época, dramaturgos inseriram alguns elementos de um evento contemporâneo real na história para deixá-la mais interessante. Nesse caso, ele utilizaram detalhes do Incidente Ako, que aconteceu no período de 1701-3. Em 1701, o Senhor de Ako, Asano Naganori, atacou um oficial chamado Kira Yoshinaka dentro do Castelo de Edo enquanto se preparava para uma cerimônia. Kira foi apenas levemente ferido, mas causar uma comoção dessa maneira era um crime grave. Foi ordenado que Asano cometesse seppuku. Seu domínio também foi confiscado, e seus retentores se tornaram ronin ou guerreiros sem mestre. Em seguida, o líder dos retentores de Asano, Oishi Yoshio, organizou um plano secreto contra Kira, por acreditar que ele era responsável pela morte de Asano. Dois anos depois, ele e seus seguidores fizeram um ataque surpresa à mansão de Kira e o mataram. Sua cabeça decepada foi levada para o Templo Sengokuji, onde Asano foi enterrado. Ali, os conspiradores esperaram até que as autoridades chegassem. Eles foram presos e, após uma investigação conduzida por oficiais do governo, foram ordenados a cometer seppuku.

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Como pode ser visto através desses curtos resumos, alguns dos principais aspectos da história de Chushingura são derivados do Incidente Ako. Isso inclui o líder dos retentores criando um plano secreto para se vingar; o ataque noturno à mansão do adversário; e a marcha para o templo, onde a cabeça do inimigo é apresentada como oferenda. Há outras similaridades. O número de participantes em ambos os ataques é o mesmo, e os nomes de vários personagens de Chushingura são parecidos com aqueles do Incidente Ako. Essas similaridades levou os críticos a pensarem que Chushingura era uma representação do Incidente Ako levemente disfarçada. Se passava no século 14, eles argumentavam, para evitar a censura do governo em uma época em que a representação de eventos envolvendo a classe guerreira governante era proibida no teatro. Apesar de ter um pouco de verdade nesse ponto de vista, ele ignora o fato de que há diferenças muito importantes entre o que aconteceu no Incidente Ako e a história de Chushingura.

Diferenças entre o Incidente Ako e Chushingura

Em Chushingura, Ko no Moronao é um vilão por tentar ter algo com a esposa de En’ya Hangan. Hangan é uma vítima, pois é forçado a se matar como resultado. No Incidente Ako, porém, não se sabe exatamente por que Asano atacou Kira. Não há evidência de que Kira era uma pessoa ruim ou de que ele fez algo de errado. Asano não foi uma vítima, mas, na verdade, o autor do ataque que deu início ao incidente. Além disso, não foi Kira que ordenou que Asano cometesse seppuku, foi o governo. Nessa situação, um ataque por vingança não seria justificado. Além do mais, no caso do Incidente Ako, não se sabe o que motivou o ataque por vingança. Apenas 47 dos 300 retentores de Asano participaram, e, na época, o Japão estava em paz há cem anos, então não se ouvia falar de coisas desse tipo.

47 Ronin Attacking Kira's Mansion
47 Ronin Atacando a Mansão de Kira
Katsushika Hokusai (Public Domain)

Em segundo lugar, Chushingura acaba bem na hora que os guerreiros estão prestes a cometer seppuku. Com isso, eles se mostram como heróis decididos a sacrificarem suas próprias vidas por lealdade ao seu falecido senhor. No caso do Incidente Ako, no entanto, os guerreiros não se matam. Eles esperam as autoridades chegarem para prendê-los. Eles só cometeram seppuku quando o governo ordenou que o fizessem, meses mais tarde. Ao invés de serem heróis, eles foram executados como criminosos. Na época, os conspiradores foram criticados por isso. Alguns dizem que se eles fossem mesmo guerreiros agindo por lealdade, teriam cometido seppuku no momento em que o ataque por vingança terminou.

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Em terceiro lugar, Chushingura possui várias subtramas do tipo que apareciam em dramas domésticos. Todas elas são completamente fictícias, mas buscam reforçar o tema central da peça, a vontade das pessoas de se sacrificar por dever e lealdade. Um exemplo disso é um retentor de Hangan chamado Kanpei. Ele não estava presente quando Hangan morreu e quer se matar por remorso, mas sua esposa, Okaru, o convence a não fazer isso. Mais tarde, Okaru concorda em ser vendida a um bordel para conseguir dinheiro para Kanpei poder se juntar a vingança. Depois, ele acredita, por engano, que matou o pai de Okaru, que estava voltando do bordel com o dinheiro. Os membros da vingança vão à casa de Okaru para devolver o dinheiro de Kanpei, pois acreditam que foi ganho de forma imoral. Por vergonha, Kanpei comete seppuku, mas, antes de morrer, ele conta sua versão da história, dizendo que a morte de seu sogro foi um acidente. Convencidos pela honestidade de Kanpei, eles pegam o pergaminho com a assinatura de todos que iriam se vingar, e Kanpei coloca seu nome na lista. Ele morre feliz, sabendo que seu nome foi incluído entre os daqueles que planejaram a vingança. Esses tipos de embelezamentos fictícios são uma das principais características de Chushingura.

Após sua primeira apresentação, a peça foi um grande sucesso. Diferentes versões foram apresentadas diversas vezes, e logo a peça foi adaptada para kabuki. Apesar dos detalhes do verdadeiro Incidente Ako serem pouco conhecidos até mesmo naquela época, a versão fictícia contida em Chushingura se tornou famosa. Como consequência, as pessoas começaram a acreditar que o que estava na peça era de fato um evento histórico real. Esse processo só aumentou quando versões posteriores da peça abandonaram a ambientação original do século 14 e passaram a ambientá-la na época do Incidente Ako, no começo do século 18, e também a usar os nomes reais dos conspiradores de Ako. É dessa forma que a história de Chushingura costuma ser apresentada em filmes e na TV hoje em dia.

Um dos motivos para Chushingura ser popular até hoje é que as pessoas acreditam que é baseado em um evento real. A ideia de indivíduos heroicos sacrificando a própria vida por seu senso de justiça e lealdade está em conformidade com a imagem popular, porém mítica, dos guerreiros japoneses. É importante lembrar, no entanto, que apesar da história conter elementos derivados do Incidente Ako, ela é em grande parte uma obra fictícia.

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Perguntas e respostas

A história dos 47 ronin é verdadeira?

A história dos 47 Ronin, como é conhecida hoje, é uma das muitas versões da peça Chushingura, que era originalmente uma obra de ficção ambientada no século 14, mas contém elementos derivados do Incidente Ako (1701-3), que é verdadeiro.

Quem são os personagens principais de Chushingura?

Na versão original de Chusingura, Ko no Moronao deseja a esposa de En'ya Hangan. O xogum ordena que Hangan cometa seppuku, e o líder dos retentores de Hangan, Yuranosuke, passa meses planjeando secretamente com seus companheiros uma vingança contra Moronao. Versões posteriores possuem personagens do Incidente Ako, como Asano, Kira e Oishi Yoshio.

Sobre o tradutor

Letícia Amboni
Letícia Amboni é tradutora e designer, formada em Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Design Gráfico. Atualmente, cursa pós-graduação em Tradução Profissional pela PUCPR.

Sobre o autor

Graham Squires
Graham Squires é professor sênior de Estudos Japoneses na Universidade de Newcastle, na Austrália.

Citar este trabalho

Estilo APA

Squires, G. (2022, setembro 30). Chushingura [Chushingura]. (L. Amboni, Tradutor). World History Encyclopedia. Recuperado de https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-21078/chushingura/

Estilo Chicago

Squires, Graham. "Chushingura." Traduzido por Letícia Amboni. World History Encyclopedia. Última modificação setembro 30, 2022. https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-21078/chushingura/.

Estilo MLA

Squires, Graham. "Chushingura." Traduzido por Letícia Amboni. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 30 set 2022. Web. 25 jan 2025.