
Paulo Orósio (comummente referido como Orósio), século V d.C., foi um teólogo e historiador cristão, amigo e protegido de Santo Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), sendo a obra mais conhecida a Historiarum adversus paganos Libri VII (História contra os Pagãos. Esboço duma História da Antiguidade Oriental e Clássica, 1986), na qual argumenta que o saque de Roma perpetrado por Alarico I, rei dos Visigodos (394-410 d.C.), em 410 d.C., não esteve relacionado com a adoção do cristianismo pelos romanos, como defendiam os pagãos da época. Incentivado a escrevê-la por Agostinho, cuja obra A Cidade de Deus foi, igualmente inspirada pelo mesmo evento, narra a história do mundo desde a Criação até ao seu tempo, de uma perspectiva cristã, tendo sido imensamente popular entre os seguidores da nova religião e uma referência histórica padrão para os escritores posteriores. Após a publicação desta obra, Paulo Orósio desaparece dos registros históricos.
Vida e Carreira
Pouco se sabe sobre a juventude de Orósio, tendo provavelmente nascido em Portugal numa família da classe alta por volta de 380, entrou para o sacerdócio ainda jovem, talvez, antes dos 20 anos de idade. Por razões desconhecidas, em 414 d.C. foi forçado a fugir de casa na Hispânia, para Hipona, no Norte de África, indo ao encontro de Santo Agostinho. Ao que tudo indica, causou uma boa impressão no clérigo mais velho pois, no ano seguinte, Santo Agostinho enviou-o a Jerusalém para debater-se com o herege Pelágio, autor da Heresia Pelagiana, que afirmava que o homem era capaz de salvação individual sem a intercessão da Igreja.
Em Jerusalém, Orósio após conferencionar com São Jerónimo e com João, Bispo de Jerusalém, enfrenta Pelágio num sínodo convocado para discutir a heresia. O resultado foi inconclusivo, contudo, no relatório oficial enviado a Roma questionava-se a ortodoxia de Orósio, que em defesa escreve a obra Liber Apologeticus contra Pelagium, de Arbitrii libertate (Defesa contra Pelágio), mantendo a ortodoxia enquanto condenava Pelágio.
No início de 416 parte da Palestina para Portugal trazendo as relíquias do primeiro mártir cristão, Santo Estêvão (do Livro Bíblico de Atos 6-7). De caminho passa por Hipona para entregar as cartas de S. Jerónimo a St.º Agostinho, e defende-se que terá sido por esta altura que Agostinho o abordou para escrever a sua história.
A maioria dos estudiosos concorda que a história de Orósio mostra sinais de ter sido escrita de forma célere, e,talvez, Agostinho desejasse que assim fosse de forma a usá-la como recurso para completar A Cidade de Deus (De Civitate Dei). Outras teorias sugerem que Orósio foi co-autor, enquanto celeremente escrevia a sua. Tudo isto é especulação, no entanto, o que realmente se sabe é que Orósio deixou Hipona e regressou para Portugal com as relíquias de Santo Estêvão. Seguidamente escreveu a sua história e, pouco depois, desapareceu.
Significado da História
A História Contra os Pagãos de Orósio foi a primeira história mundial, dividido em sete Livros, escrita por um cristão e concluída por volta de 418, pouco depois do saque de Roma por Alarico. Baseando-se nas obras de Lívio, César, Tácito, Justino, bem como de Suetônio, Flórus, a Bíblia e a História Eclesiástica de Eusébio (de Cesaréia), Orósio sustentou a afirmação de que o cristianismo havia feito mais bem do que mal no mundo e, certamente, não era responsável pelos acontecimento ocorridos em Roma.
A obra de Orósio não é apenas uma refutação da afirmação pagã de que o Cristianismo destruiu Roma, mas também uma história detalhada que apresenta o Deus cristão no papel de responsável pelos acontecimentos humanos. Agostinho estava interessado numa história do mundo que ilustrasse como Deus organizava os assuntos das nações para os seus próprios fins, que, embora muitas vezes não fossem claros para a humanidade, eram sempre os melhores. Orósio levou este pedido a sério e começou a obra com a Criação do Mundo, como entendido pela perspectiva cristã. Orósio inícia a obra escrevendo:
Falarei, portanto, sobre o período desde a Criação do Mundo até a fundação da Cidade, e depois sobre o período que se estende até o principado de César e o nascimento de Cristo, a partir do qual o domínio sobre o mundo permaneceu nas mãos da Cidade até os nossos dias. Na medida em que me lembro deles, vendo-os como se estivesse numa torre de vigia, apresentarei os conflitos da raça humana e falarei sobre as diferentes partes do mundo que, incendiadas pela tocha da ganância, agora ardem com males. (Livro I, capítulo 1:4)
A cidade a que Orósio se refere, claro, é Roma (a 'cidade' também em A Cidade de Deus de Agostinho), que era considerada (com razão) o centro urbano mais importante e influente do mundo. No Livro I, Orósio conta a história do Mundo desde a Criação até ao Grande Dilúvio e a fundação de Roma. O Livro II discursa sobre a história romana até ao saque de 390 a.C. pelos gauleses e as subsequentes interações de Roma com outras nações. Nos Livros III e IV, Orósio refere Alexandre, o Grande, da ascensão e queda das nações; do papel de Roma nas Guerras Púnicas, e da destruição de Cartago. Os Livros V, VI e VII focam-se em Roma desde o fim da Terceira Guerra Púnica (146 a.C.) até o tempo de Orósio, c. 418 d.C..
O propósito de A Cidade de Deus de Agostinho era defender o cristianismo teológica e filosoficamente contra o paganismo e, especificamente, contra a acusação de que o cristianismo tinha desempenhado um papel no saque de Roma. O propósito da obra de Orósio era complementar a obra de Agostinho com uma história detalhada demostrando como grandes nações tinham emergido e caído desde o início do mundo, muito antes da vinda de Cristo, e, desta forma, a afirmação de que o Cristianismo era responsável pelas calamidades de uma nação era insustentável. Roma caiu pelas mesmas razões pelas quais as cidades e estados anteriores tinham caído - porque Deus assim o quis e Deus estava no controlo - e não porque o Cristianismo tivesse de alguma forma interferido na relação da humanidade com o Divino; pelo contrário, o Cristianismo tinha revelado a verdadeira natureza desta relação, segundo Orósio.
Para ambos os autores, o significado destas obras era a salvação das almas e a defesa da sua fé. Se a afirmação de que o Cristianismo tinha destruído Roma persistisse e se tornasse mais amplamente aceite, menos pessoas estariam dispostas a abraçar a nova fé. O medo naquela época era que o Paganismo revivesse por causa do saque de Roma e o Cristianismo vacilasse, talvez até falhasse, e as almas que poderiam ter sido salvas perder-se-iam para a eternidade. Ambas obras tinham de ser detalhadas e precisas, porque a religião politeísta de Roma tinha estado intimamente ligada a todos os aspectos da vida quotidiana das pessoas e não se podia simplesmente afirmar que esta crença tinha estado errada; era preciso provar conclusivamente que era errada.
A Roma Pagã
A religião politeísta de Roma era patrocinada pelo Estado, e a saúde do Estado era considerada contingente à correta observação dos ritos e práticas religiosas. Os deuses da Roma Antiga eram consultados regularmente sobre questões de Estado, e os sacerdotes eram considerados capazes de interpretar com precisão a vontade divina. Quer a questão fosse lançar uma campanha militar, construir um novo edifício ou plantar uma determinada cultura agrícola num determinado momento, os deuses eram chamados a tomar uma decisão que era então respeitada e cumprida.
Um exemplo da relação entre o templo e o Estado são as Virgens Vestais: as únicas membros do clero em tempo integral da Roma Antiga e serviam a deusa Vesta, protectora da lareira, do lar e da hospitalidade. Vesta era considerada uma das deusas mais importantes, pois tinha como atributo assegurar a paz e a tranquilidade de cada um dos cidadãos de Roma, e pessoas felizes geravam comunidades felizes e incentivavam a estabilidade e o bem comum.
As Virgens Vestais eram responsáveis por cuidar da chama sagrada de Vesta no Fórum Romano, do santuário e dos objetos a ela consagrados, presidir às cerimónias e fazer o pão especial servido no dia da festa de 1 de Março, o Ano Novo Romano. As Virgens (apenas quatro ou seis ao todo) faziam votos de castidade durante os seus 30 anos de serviço, dedicando os seus corpos, tal como os corações e as almas, ao serviço de Vesta. A punição por violar o voto de castidade era a morte, porque pensava-se que elas não só tinham traído Vesta, mas também o Estado. Acreditava-se que a sua ofensa contra a Deusa acenderia a sua ira contra a cidade.
Se as Virgens cumprissem fielmente os seus deveres, Vesta ficaria satisfeita e tudo correria bem para o povo de Roma. Este mesmo paradigma acontecia com os outros Deuses do panteão romano. O Estado ordenava os ritos específicos e os tipos de comportamento aceitáveis para os Deuses, patrocinava os festivais e os dias de festa dos Deuses e ofertando regularmente sacrifícios, na certeza de que estes, por sua vez, os protegeriam e ajudariam em tempos de necessidade. Esta relação de quid pro quo (contrapartida) só funcionava, no entanto, se o povo de Roma cumprisse a sua parte do acordo. O cristianismo, afirmavam os pagãos, tinha-os feito falhar e tinha trazido Alarico a Roma como castigo.
O Saque de Roma por Alarico
À medida que o Império Romano se expandia, necessitava cada vez mais de homens para o serviço militar e começou a empregar cada vez mais mercenários no seu exército. Os mercenários não eram novidade na máquina de guerra romana - Júlio César (100-44 a.C.) havia usado-os nas suas campanhas – contudo o número deste tipo de soldados aumentou conforme o império se expandia. No século III d.C., os mercenários superavam em número os soldados romanos no exército, e muitos deles eram godos.
No final do século IV, o rei visigodo Alarico I juntou o seu exército ao romano como contingente mercenário na guerra civil entre Teodósio I do Império Romano do Oriente (379-395) e Eugenio do Império Romano do Ocidente (392-394). A decisão de Alarico não foi voluntária, dado que cumpria uma estipulação do tratado, do ano 382, entre os godos e Roma, de que os godos poderiam estabelecer-se nos Balcãs (como aliados, mas não como cidadãos plenos) em troca de serviço militar. Na Batalha do Frígido em 394, as tropas de Alarico lutaram por Teodósio I, mas foram colocadas nas linhas de frente como, essencialmente, isco para os lanceiros inimigos. As forças de Teodósio I ganharam a batalha - alegadamente com assistência divina - mas as perdas de Alarico foram pesadas.
Poucos meses depois da batalha, Teodósio I morreu, deixando os dois filhos jovens aos cuidados do General Estilicão (359-408), que, portanto, se tornou regente do jovem herdeiro Honório (395-423). Alarico, numa tentativa de recuperar as perdas sofridas e forçar Roma a reconsiderar os termos do tratado de 382, iniciou uma série de ataques nos Balcãs, que como ele afirmou cessariam se os godos recebessem grãos (de pimenta) e a cidadania plena como romanos. Estilicão recusou o pedido, e os ataques continuaram e Alarico enviou outra mensagem solicitando 2.300 quilos de ouro.
Estilicão esteve prestes a ceder, contudo o Senado rejeitou e declarou Alarico inimigo do Estado. Um dos senadores, Olímpio, ganhou a confiança do jovem Honório e persuadiu-o de que Estilicão se tinha aliado a Alarico. Em 408, Olímpio orquestrou um massacre aos mercenários godos incorporados no exército romano, do qual Estilicão foi uma das vítimas. Cansado das maninpulações e duplicidade romanas, Alarico invadiu e saqueou Roma em 410.
Este evento foi, naturalmente, considerado uma grande tragédia pelos Romanos, que não conseguiam entender como e porque é que tal aconteceu. Afinal, sempre tinham feito o melhor para cumprir a sua parte do acordo com os Deuses, mas as divindades aparentemente os trairam-nos junto dos inimigos. A sequência prática e terrena dos eventos que levaram ao saque de Roma foi completamente ignorada na busca por uma explicação sobrenatural para a catástrofe, e a resposta que surgiu foi que os cristãos eram os culpados por irritar os Deuses, arruinando a relação de Roma com o divino devido à nova fé.
Pagãos vs. Orósio
Os pagãos acusaram os cristãos de se recusarem a participar nos festivais, a ofertar sacrifícios aos Deuses, até mesmo de troçarem deles, negando o contrato entre os Deuses e Roma, irritando-os.
Tradicionalmente, defendiam os Pagãos, os Deuses de Roma haviam sido gentis para com a cidade, protegendo-a de invasores por mais de 800 anos, e a fé cristã era um insulto ingrato aos séculos de bondade e amor que os Deuses haviam mostrado à cidade. Todos os aspectos da vida romana vinham dos Deuses - da vida doméstica à própria vida do Estado - e se o devido respeito e honra tivessem continuado, o saque de Roma nunca teria ocorrido.
Orósio tentou mostrar como, muito antes do Cristianismo aparecer no palco mundial, grandes nações e estados haviam caído enquanto adoravam Deuses muito semelhantes aos de Roma. Se estas nações mais antigas tinham sucumbido enquanto estavam envolvidas em crenças e ritos religiosos politeístas, porque é que Roma seria uma exceção? Longe do Cristianismo ser o culpado pela queda de Roma, muito provavelmente, a verdadeira causa terá sido a teimosia romana em recusar a aceitar a revelação de Deus através de Jesus Cristo. Roma havia adorado falsos deuses e demónios durante séculos e, quando o verdadeiro Deus apareceu, foi rejeitado em detrimento do conforto da tradição e falsos ídolos.
Conclusão
A obra de Orósio foi publicada aproximadamente na mesma época em que o Cristianismo ganhava impulso. Em 415 d.C., a filósofa pagã Hipátia de Alexandria foi assassinada por uma multidão cristã no Egito, enquanto que templos e bibliotecas pagãos foram saqueados. O próprio Orósio alude a tais eventos na sua obra, afirmando que era uma pena que livros tivessem sido perdidos pelo zelo dos irmãos cristãos. Enquanto Roma era saqueada, as Igrejas cristãs substituíam os Templos pagãos por todo o mundo antigo, razão pela qual por Agostinho e Orósio delinearam uma defesa de forma a garantir que o impulso continuasse.
A História Contra os Pagãos tornou-se muito popular após a publicação e, devido à amizade e patrocínio de Santo Agostinho, foi facilmente aceite pela Igreja primitiva como a "verdadeira" História e, eventualmente, encontrou o seu caminho na história aceite sobre a queda do Império Romano até Edward Gibbon publicar a sua famosa História do Declínio e Queda do Império Romano (entre 1776 e 1788), que apresentou uma visão muito diferente da situação e, desde então, influenciou outros historiadores a reavaliar a interpretação de Orósio nas fontes das obras antigas. Contudo, Orósio permanece um escritor importante do seu tempo e a sua obra ainda é frequentemente citada em obras teológicas, filosóficas e históricas.
De igual importância, a história de Orósio forneceu aos historiadores antigos um modelo para escrever a História, bem como na cartografia. A descrição detalhada de Orósio da geografia do mundo antigo forneceu informações muito apreciadas pelos cartógrafos, até e além da Idade Média. O famoso Hereford Mappa Mundi (Mapa Mundo de Hereford, c. 1300) cita Orósio como fonte.
Embora as obras História Contra os Pagãos e A Cidade de Deus tenham sido escritas sob a visão cristã, Orósio e Agostinho tentavam explicar um aspecto da condição humana que ainda perturba e confunde as pessoas - de todas as crenças ou nenhuma - nos dias de hoje: porque é que coisas más acontecem às pessoas boas. Agostinho admitiu livremente que coisas más acontecem com todos os tipos de pessoas - boas e más, cristãs e pagãs - sempre, e Orósio ilustrou este ponto na sua obra. No entanto, nenhum dos autores foi capaz de responder à questão porque é que pessoas aparentemente boas sofrem ou porque é que pessoas aparentemente más prosperam, assim como ninguém respondeu adequadamente a esta questão até os dias de hoje.