Os Textos dos Sarcófagos (c. 2134-2040 AEC) remetem-nos para 1185 feitiços, encantamentos e textos de cariz religioso, inscritos nos sarcófagos, com o propósito de ajudar o defunto na sua caminhada pelo Além. Nestes estava incluído o famoso Livro dos Dois Caminhos, que fornecia mapas do Submundo, assim como formas de evitar perigos durante esta jornada até ao paraíso. O egiptólogo Geraldine Pinch sublinha que "estes mapas, normalmente pintados no fundo dos sarcófagos, são os primeiros mapas conhecidos de qualquer cultura" e o Livro dos Dois Caminhos "não é mais do que um guia ilustrado para a vida após a morte" (15). Este livro não era um trabalho em separado, nem mesmo um livro físico, mas sim uma coletânea de mapas detalhados, inscritos no interior do caixão.
Estes textos derivam, em parte, dos Textos das Pirâmides (c. 2400-2300 AEC) e serviram de inspiração para uma obra posterior, o Livro dos Mortos (c. 1550-1070 AEC). Foram escritos durante o Primeiro Período Intermédio (2181-2040 AEC), apesar de haver evidências de que começaram a ser escritos em finais do Império Antigo (c. 2613-2181 AEC) até inícios do Império Médio (2040-1782 AEC). Já no Império Novo (c. 1570-1069 AEC), viriam a ser substituídos pelo Livro dos Mortos.
Os Textos dos Sarcófagos são relevantes a vários níveis, mas principalmente por que ilustram a mudança cultural e religiosa entre o Império Antigo e o I Período Intermédio, clarificando o desenvolvimento das crenças religiosas egípcias.
Império Antigo e Primeiro Período Intermédio
O Império Antigo é bastante conhecido como a "Era das Pirâmides". O faraó Sneferu (c. 2613-2589 AEC) aperfeiçoou bastante este tipo de construções, e o seu filho, Khufu (2589-2566 AEC) erguera a maior de todas as pirâmides egípcias – a Grande Pirâmide de Gizé. A Khufu sucedera Khafre (2558-2532 AEC), e a este Menkaure (2532-2503 AEC), tendo erguido ambos uma pirâmide no mesmo local. Os três monumentos encontravam-se cercados por complexos funerários, que incluíam templos – geridos pelo clero – e alojamento para os funcionários públicos que trabalhavam no local. Embora hoje em dia olhemos para as pirâmides de uma maneira fascinada, estamos pouco cientes dos enormes custos que estas acarretaram.
Ao longo do Império Antigo, os governantes não tinham o objetivo de construir apenas os próprios túmulos, mas também de manter os monumentos dos seus antecessores. Gizé era a necrópole dos monarcas deste período; porém, existia ainda o complexo de Saqqara, o de Abusir, e outros tantos. Todos estes eram servidos e administrados por sacerdotes – responsáveis pelos rituais de homenagem ao falecido monarca, ajudando-o na sua jornada pelo Submundo.
Os sacerdotes recebiam doações reais para recitarem orações, fazerem feitiços e realizarem os devidos rituais, ficando isentos de pagar impostos. Como possuíam grande quantidade de terras, tal significava uma perda significativa para as receitas do faraó. Na V Dinastia, o rei Djedkare Isesi (2414-2375 AEC) decidiu descentralizar o governo, dando mais poder aos governadores regionais (nomarcas), que poderiam agora enriquecer graças ao poder central. Estes fatores acabaram por contribuir para o colapso do Império Antigo no final da VI Dinastia, dando início ao I Período Intermédio.
Durante este período, a antiga ideia de um rei forte a chefiar um governo central estável fora substituído por nomarcas individuais, que governavam em separado as respetivas províncias. O rei continuava a ser respeitado e os impostos enviados para a capital – Mênfis –, mas o povo e os nomarcas disfrutavam de uma maior autonomia, em relação ao período anterior. Esta mudança no modelo de governo, permitiu mais liberdade de expressão na arte, arquitetura e artesanato, dado não existir um ideal já pré-concebido pelo Estado de como os deuses, reis e animais deviam ser representados; cada região era livre de se expressar, artisticamente, da maneira que mais desejasse.
Tudo isto resultaria, também, numa certa democratização de bens e serviços. Enquanto que antes, apenas o rei podia usufruir de certos luxos, agora estes encontravam-se disponíveis para a nobreza, funcionários da corte e pessoas comuns. A produção em massa de bens – no que toca à estatuária e cerâmica – começara. Aqueles que não se podiam dar ao luxo de possuir um túmulo ricamente decorado com inscrições, durante o Império Antigo, detinham agora essa liberdade. Assim como o faraó podia ter o seu túmulo adornado com os Textos das Pirâmides, nesta altura qualquer um poderia ter o mesmo através dos Textos dos Sarcófagos.
A democratização da vida após a morte
Os Textos dos Sarcófagos foram criados para se atender à nova conceção da vida após a morte e do lugar de cada um nela. A egiptóloga Helen Strudwick explica-nos o seu propósito:
Os textos, enquanto coleção de credos, hinos, orações e feitiços, tinham a missão de ajudar o defunto na sua viagem até ao Além; tendo nascido estes como uma ramificação dos Textos das Pirâmides, um conjunto de feitiços e orações inscritos nas paredes internas das pirâmides do Império Antigo. Os Textos das Pirâmides destinavam-se, exclusivamente, ao uso do monarca e da sua família, ao passo que os Textos dos Sarcófagos eram utilizados pela nobreza, por altos funcionários e por pessoas comuns que detinham capacidade monetária para os adquirir. Os Textos dos Sarcófagos significavam que qualquer pessoa, independentemente da sua posição e com o auxílio de feitiços e orações, podia agora ter acesso à vida após a morte. (502).
Durante o Império Antigo, apenas o rei tinha a garantia de uma existência continuada após a morte. Nos inícios do I Período Intermédio, contudo, as pessoas comuns começaram a ser consideradas tão dignas de uma vida no Além, como qualquer indivíduo da realeza. Este período tem sido um pouco mal interpretado pela comunidade académica, sendo considerado como uma época de caos e conflito, apesar de ter sido um período de enorme crescimento cultural e artístico. Os investigadores que afirmam que se tratara de uma 'era das trevas' após o colapso do governo central, muitas vezes citam a falta de projetos de construção magnânimos e uma qualidade menos rigorosa na arte e artesanato, como prova.
Na realidade não foram erguidas pirâmides nem templos, devido à falta de somas monetárias, não havia um governo central estável capaz de ditar a ordem dos trabalhos, e a fraca qualidade do artesanato, a que se assiste na altura, dever-se-ia à produção de bens em massa. Há amplas evidências, também, de túmulos incrivelmente decorados e de belas obras de arte, que demonstram que aqueles que, antes eram considerados simples mortais, podiam agora rivalizar e pagar os mesmos luxos da realeza, além de viajar para o Além como o próprio rei.
O Mito de Osíris
A democratização da vida após a morte deveu-se, em parte, à popularidade do mito de Osíris. Osíris, o primeiro deus a nascer depois da Criação do Mundo, juntamente com a irmã-esposa, Ísis, foi o primeiro rei do Egito até ser morto pelo irmão, Set. Apesar de Ísis ter a capacidade de trazer o marido de novo à vida, este encontrava-se desmembrado e incompleto, sendo que descera ao Submundo para o governar, como seu Senhor e Juiz dos Mortos.
O culto a Osíris tornara-se ainda mais popular durante o I Período Intermédio, dado o deus ser visto como 'o primeiro dos ocidentais', o principal entre os mortos, quem prometera a vida eterna àqueles que haviam acreditado nele. Quando Ísis se prepara para o ressuscitar, pede à irmã, Nephthys, que a auxilie com preces e encantamentos mágicos – esta parte do mito viria a ser reconstituída durante o festival de Osíris (e também em funerais), através das Lamentações de Ísis e Nephthys, uma performance levada a cabo por duas mulheres desempenhando o papel de divindades, aclamando e chamando Osíris para o evento. O festival era uma reconstituição da ressurreição e todos os presentes participariam espiritualmente deste renascimento.
Feitiços
Os feitiços e encantamentos dos Textos dos Sarcófagos referem bastantes deuses (Amun-Ra, Shu, Tefnut, Thoth), mas baseiam-se essencialmente no Mito de Osíris. O Feitiço 74 (Feitiço para fazer renascer Osíris) reconstitui o momento em que Ísis e Nephthys trazem Osíris de novo à vida:
Oh, Desamparado!
Oh, Desamparado Adormecido!
Oh, Desamparado neste lugar
que não conheces; sim, eu sei!
Eis que te encontrei deitado de lado
o grande Apático.
'Oh, irmã!' diz Ísis a Nephthys,
Este é o nosso irmão,
Vem, vamos levantar-lhe a cabeça,
Vem, vamos reunir-lhe os ossos,
Vem, vamos montar os seus membros,
Vem, vamos dar um fim a todas as suas aflições,
que, tanto quanto podemos ajudar, ele não se cansará mais. (Lewis, 46)
Apesar das palavras serem dirigidas a Osíris, aplicavam-se agora à alma do defunto. Assim como Osíris voltara à vida por meio dos encantamentos das irmãs, a alma acordaria após a morte e continuaria a ser aceite e permitida a sua entrada no paraíso.
A alma dos mortos participava da ressurreição de Osíris, dado que o deus havia feito parte da jornada da alma pela terra dando-lhe vida, e tornando-se também parte do solo, das colheitas, do rio, ou até da casa que a pessoa tivera em vida. O Feitiço 330 declara,
Mesmo que eu viva ou morra, sou Osíris
Eu entro e parto através de ti
Eu decaio em ti
Eu cresço em ti... Eu cubro a terra... Eu não sou destruído (Lewis, 47).
Capacitada por Osíris, a alma poderá continuar a sua viagem pelo Além. Como em qualquer viagem por um sítio desconhecido, a existência de um mapa com direções era necessário. O Livro dos Dois Caminhos (assim chamado, pois oferecia duas rotas – uma por terra, outra pela água –, para o Além) mostrava mapas, rios e canais, assim como formas de evitar o Lago do Fogo e outras armadilhas que surgissem durante a viagem. O caminho através do Submundo era perigoso e difícil para uma alma recém-chegada. Os Textos dos Sarcófagos garantiam à alma a segurança necessária até chegar ao seu destino. Strudwick afirma "O conhecimento dos feitiços e a posse de mapas, significavam que o falecido, tal como os faraós, era capaz de enfrentar os perigos do Além e alcançar a vida eterna" (504).
Esperava-se que a alma tivesse vivido uma vida digna, sem pecado e que fosse aceite por Osíris. As instruções ao longo do texto presumem que a alma será julgada dignamente e reconhecerá amigos, bem como ameaças. No Feitiço 404 podemos ler:
Ele (a alma) chegará a outra porta. Ele encontrará as companheiras-irmãs que lhe dirão "Venha, queremos beijá-lo". E eles vão cortar o nariz e os lábios daqueles que não souberem os seus nomes. (Lewis,48)
Se a alma falhasse a reconhecer Ísis e Nephthys, enfrentaria uma pesada punição. O Feitiço 404 faz referência a uma porta que a alma encontra no seu caminho – havendo várias delas –, assim como algumas divindades que gostaria de evitar ou apaziguar.
Escrita e renovação
Tal como os textos representam a democratização da vida após a morte, o mesmo ocorre com os suportes onde foram pintados. Os grandes sarcófagos do Império Antigo foram substituídos por caixões mais simples, durante o I Período Intermédio. Estes seriam mais ou menos elaborados, dependendo da riqueza e do status do defunto. A egiptóloga Rosalie David comenta:
Os primeiros caixões eram feitos de uma espécie de papel feito à base de papiro e goma, ou de madeira. No Império Médio, os de madeira tornar-se-iam cada vez mais comuns. Mais tarde, alguns começam a ser feitos de pedra, cerâmica, ouro, geralmente para a realeza, ou até prata. (151-152)
Os escribas pintavam cuidadosamente os textos nos caixões, incluindo ilustrações da vida da pessoa na Terra. Uma das principais funções dos Textos das Pirâmides eram a de relembrar ao rei quem ele fora em vida e o que havia conquistado. Quando a alma acordasse no túmulo veria as imagens e os textos, e era capaz de se reconhecer – o mesmo conceito foi usado nos Textos dos Sarcófagos.
Cada espaço disponível no caixão era utilizado para colocar textos, apesar de aquilo que era escrito diferir de pessoa para pessoa. Geralmente, mas nem sempre, haviam ilustrações que descreviam a vida de alguém, assim como frisos horizontais de várias oferendas, textos verticais a descrever os objetos necessários para a vida no Além e instruções sobre como a alma deveria viajar. Os textos eram escritos em tinta preta, e as passagens que surgem a vermelho serviam para salientar as forças demoníacas e perigosas. Geraldine Pinch descreve-nos uma parte dessa jornada:
O defunto tinha de passar pela misteriosa região de Rosetau, onde jazia o corpo de Osíris rodeado por paredes de fogo. Se o homem ou mulher falecidos provassem serem dignos, recebiam uma nova vida no paraíso. (15)
Em eras posteriores, essa nova vida seria concedida apenas se a pessoa fosse aceite no Salão da Verdade, mas na altura em que os Textos dos Sarcófagos foram escritos, parece que a alma teria de passar por uma espécie de um fogo que ardia em torno do corpo de Osíris. O culto de Osíris tornou-se no culto de Ísis, no Império Novo, e o seu papel na ressurreição fora enfatizado. O Livro dos Mortos substituíra, então, os Textos dos Sarcófagos, como guia para a vida após a morte. Embora alguns túmulos e caixões tivessem ainda inscrições e feitiços, o Livro dos Mortos tornar-se-ia na obra basilar para ajudar a alma a alcançar o paraíso, pelo resto da história do Antigo Egito.