Jogos, Esportes e Recreação no Egito Antigo

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Artigo

Joshua J. Mark
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 11 abril 2017
Disponível noutras línguas: Inglês, Árabe, francês, espanhol
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Embora os antigos egípcios sejam retratados geralmente como circunspectos e obcecados com a morte, de fato eles tinham grande apreciação pela vida e sua cultura refletia a crença na existência como uma jornada eterna e repleta de magia. A vida, uma dádiva dos deuses, devia ser desfrutada da maneira mais completa possível.

As inscrições, obras de arte e objetos de uso geral deixam claro que os antigos egípcios enfatizavam o gosto pela vida e em fazer com que sua existência terrena os tornasse merecedores da eternidade. Uma das maneiras pelas quais eles buscavam esta meta é familiar a todos nos dias atuais: através de esportes e jogos.

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Game of Senet
Jogo de Senet
Tjflex2 (CC BY-NC-ND)

Muitas dessas atividades recreativas são semelhantes às dos tempos modernos, praticadas mais ou menos da mesma forma. A aptidão física representava um papel importante da vida dos egípcios na época e os esportes ajudavam a manter a saúde e o vigor. Os jogos de tabuleiro ofereciam desafios mais intelectuais, como o popular Senet, que parece ter sido a versão egípcia do jogo de damas. Todas essas atividades refletiam valores culturais, uma vez que, além da diversão, também contribuíam para o bem-estar geral.

Recreação

Os egípcios de todas as classes sociais passavam muito tempo ao ar livre desde a infância. As obras de arte e inscrições, bem como cartas, fornecem exemplos de crianças brincando no quintal ou na rua desde tenra idade. Meninos e meninas ficavam despidos desde o nascimento até a puberdade e muitas figuras retratadas em pinturas estão obviamente dentro dessa época da vida.

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Acreditava-se que uma infância salutar conduziria a um adulto saudável e membro produtivo da comunidade.

Os meninos tinham o cabelo unido num cacho lateral e o restante da cabeça raspada, na juventude, e esse aspecto também é retratado em muitos trabalhos mostrando pessoas jogando ao ar livre. Acreditava-se que uma infância salutar conduziria a um adulto saudável e membro produtivo da comunidade, ainda que, numa aparente contradição deste conceito, os padres, escribas e administradores ricos sejam frequentemente retratados como acima do peso.

Ainda assim, o atletismo e a aptidão física desempenhavam um papel fundamental na vida dos egípcios de qualquer idade. Competições esportivas integravam a programação da coroação do rei, celebrações de vitórias militares, cerimônias religiosas e festivais, enquanto os jogos eram obviamente um passatempo popular, a julgar pelo número de tabuleiros descobertos e pela frequência com que aparecem nas obras de arte. O Senet, de fato, aparece sendo jogado por pessoas e deuses na vida após a morte e acredita-se que espelhava a jornada das pessoas pela vida rumo à eternidade.

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As crianças egípcias também se divertiam com brinquedos e muitos deles ainda são apreciados pelos jovens nos dias de hoje. Meninos e meninas não brincavam juntos e seus diferentes esportes refletiam a expectativa de comportamento em relação aos gêneros: os meninos aparecem frequentemente lutando, remando ou praticando boxe e outros esportes de equipe competitivos, como um tipo de hóquei, enquanto as meninas são retratadas fazendo malabarismos ou ginástica, além de dança. Meninas e meninos eram ensinados a nadar desde a mais tenra idade, e ambos são representados neste esporte e usando pequenos barcos.

Brinquedos

Muitos dos brinquedos dos jovens egípcios assemelhavam-se às figuras de ação e bonecas de hoje. A egiptóloga Rosalie David observa que "crianças pequenas brincavam com bonecas em seus berços; brinquedos de animais, incluindo crocodilos com mandíbulas móveis; fantoches, incluindo anões dançantes; chocalhos e piões; e armas em miniatura" (330). Eles também se entretinham com figuras de mulheres e homens feitas de barro ou madeira. Uma peça especialmente intrincada do Médio Império (2040-1782 a.C.) traz uma figura (em geral interpretada como uma mulher) batendo massa (ou moendo grãos, conforme outra interpretação). Trata-se de um brinquedo móvel, no qual um pedaço de corda está amarrado na figura de madeira, que por sua vez fica presa numa plataforma e curvada sobre uma inclinação, segurando um objeto oval. Quando se puxava a corda, a figura ia e voltava em sua tarefa.

Ancient Egyptian Toy
Antigo Brinquedo Egípcio
Rob Koopman (CC BY-SA)

Muitos brinquedos utilizavam pedaços de corda ou barbante. Havia cavalos e carros com cavaleiros de brinquedo no Novo Império (c. 1570-1069 a.C.), depois da introdução dos cavalos e dos carros de guerra pelos hicsos, durante o Segundo Período Intermediário do Egito (c. 1782-1570 a.C.). As crianças também dispunham de gatos, cães, ratos, sapos e pássaros de brinquedo. Um deles é conhecido como o Pássaro de Saqqara, datado de c. 200 a.C., que certos teóricos marginais apontam como evidência de que os antigos egípcios conheciam a aerodinâmica. Testes em modelos do Pássaro de Saqqara demonstraram, no entanto, que o objeto não tem formato aerodinâmico e jamais voaria. O especialista em aviação Martin Gregorie, após testes exaustivos com um modelo, concluiu que se tratava de um brinquedo infantil ou um cata-vento.

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As bonecas femininas eram feitas de pano e recheadas com grama, feno e, mais tarde, pelos de cavalo. Os meninos tinham bonecos de atletas e soldados feitos de barro, madeira ou pano recheado. Uma peça especialmente interessante, do Novo Império, consiste num cão mecânico com uma alavanca por baixo (projetando-se para baixo do peito) que se move quando se pressiona as costas do boneco; a depressão e a liberação da alavanca movem o cão para a frente.

Jogos

Os brinquedos em forma de cachorro estavam entre os mais populares, refletindo a importância deste animal, que também aparece no jogo de tabuleiro conhecido como Cães e Chacais. O jogo era popular durante o Médio Império e o arqueólogo Howard Carter (famoso pela descoberta do túmulo de Tutankhamon) descobriu em Tebas o exemplar melhor preservado, datado da 13ª Dinastia. Jogava-se num tabuleiro de madeira ornamentado com cinquenta e oito buracos e peças de madeira pontiaguda com cabeças de cachorro ou chacal. O propósito parece ser capturar as peças do oponente enquanto se avança pelo tabuleiro, mas isso não passa de uma conjectura.

Um dos jogos de tabuleiro mais antigos era o Mehen (também conhecido como o Jogo da Serpente), que data do Período Dinástico Inicial (c. 3150 - c. 2613 a.C.), disputado num tabuleiro de pedestal, gravado com a imagem de uma serpente enrolada sobre si mesma. Os jogadores usavam peças com o formato de leões e leoas, bem como objetos redondos, e acredita-se que a meta seria percorrer toda a extensão da serpente. Não foram encontradas regras para nenhum desses jogos e, portanto, qualquer interpretação de seus objetivos não passa de especulação.

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Rosalie David comenta: "há alguma dificuldade em distinguir verdadeiros brinquedos e jogos (destinados a divertir e entreter seus donos) de 'bonecas' ou outras estatuetas usadas para fins mágicos ou religiosos" (330). Isso certamente se aplica ao Mehen, pois o jogo pode representar uma encenação ritual da Derrubada de Apófis, uma cerimônia que visava a impedir que a Grande Serpente abatesse a barca do deus sol durante seu trajeto noturno pelo submundo. Há tabuleiros Mehen que sugerem essa possibilidade, pois a serpente gravada no topo é segmentada em quadrados, assim como Apófis, que acabou retalhado em pedaços mas, ainda assim, ameaçava o sol a cada noite. Porém, os quadrados podem ser simplesmente espaços no tabuleiro para as peças, sem nenhuma relação com o mito de Apófis.

Mehen
Mehen
Rob Koopman (CC BY-SA)

O jogo de tabuleiro mais popular era o Senet, geralmente descrito como o "típico" jogo egípcio antigo na televisão e no cinema (embora Cães e Chacais tenha feito algumas aparições notáveis). O jogo data do início do Período Dinástico Inicial e permaneceu popular ao longo da história do Egito. Dois jogadores se enfrentavam num tabuleiro com trinta quadrados, usando cinco ou sete peças. O objetivo parece ter sido mover todas as peças para a outra extremidade do tabuleiro e, ao mesmo tempo, impedir o adversário de fazer o trajeto oposto. Existem representações artísticas do Senet em obras de arte do Novo Império que mostram a realeza disputando partidas - como, por exemplo, a esposa de Ramsés II, a rainha Nefertari (c. 1255 a.C.), numa pintura em seu túmulo.

Tabuleiros de Senet foram encontrados em túmulos reais desde o Período Dinástico Inicial até o Período Tardio do Antigo Egito (525-332 a.C.) e em regiões além das suas fronteiras, atestando sua popularidade. A partir do Novo Império, transformou-se numa representação da jornada da vida para a eternidade, conforme evidenciado por textos, inscrições e gravuras em tabuleiros de jogo reais. No Livro Egípcio dos Mortos, o Senet aparece na seção inicial do longo Feitiço 17, o que o relaciona fortemente com a vida após a morte e aos deuses.

Esportes

Os deuses também faziam parte das competições esportivas e de atletismo incluídas em cerimônias e festivais religiosos. Os participantes encenavam batalhas simuladas entre os seguidores de Hórus e Set para comemorar a vitória de Hórus e o triunfo da ordem sobre o caos. Essas representações incorporavam muitos dos esportes praticados regularmente pelos egípcios.

Entre os esportes mais populares contavam-se a pesca, remo, arremesso de dardo, boxe, luta livre, levantamento de peso e ginástica. Nos esportes em grupo, o mais frequentemente disputado era o hóquei de campo, além de uma espécie de cabo de guerra que utilizava uma argola. Também muito popular, o tiro com arco estava associado principalmente à nobreza e a realeza. Amenófis II (ou Amenhotep, 1425-1400 a.C.), um excelente arqueiro, "aparentemente era capaz de atirar uma flecha através de um alvo de cobre sólido enquanto estava montado num carro" (Wilkinson, 234). Ramsés II (1279-1213 a.C.), também conhecido como um hábil arqueiro e caçador, manteve-se fisicamente em forma durante toda a sua longa vida.

Ramesses II at The Battle of Kadesh
Ramsés II na Batalha de Kadesh
Cave cattum (CC BY-SA)

A aptidão física era considerada tão importante para um faraó que parte do festival Heb-Sed, realizado após os primeiros trinta anos do reinado de um rei com o objetivo de rejuvenescê-lo, concentrava-se na capacidade do rei de fazer uma corrida realizando diferentes tarefas ao longo do caminho (incluindo a perícia com o arco e flecha). Estimulava-se os príncipes a se exercitar regularmente, especialmente no Novo Império, porque havia a expectativa de que liderassem o exército em batalhas. O egiptólogo Toby Wilkinson observa que

As atividades físicas e enérgicas desempenharam um papel particularmente importante na educação dos futuros líderes. Corrida, salto, natação, remo e luta faziam parte da rotina semanal, projetadas para desenvolver a força, resistência e espírito de equipe. (234)

Embora o exercício físico fosse importante para a realeza, não havia limitações em termos de status social. As descrições de esportes indicam que pessoas em todos os níveis da sociedade os apreciavam e praticavam com frequência. Os reis egípcios são frequentemente retratados na caça, mas as pessoas comuns são vistas em competições de remo, duelos aquáticos, corridas competitivas, jogando handebol e competições de salto em altura, entre outros esportes. As disputas aconteciam de maneira semelhante aos dias atuais.

O hóquei em campo era disputado com duas equipes adversárias usando ramos de palmeiras cortados e moldados com extremidades curvas e uma bola feita de um recheio de papiro revestido com tecido ou pele de animais. As competições de malabarismo usavam o mesmo tipo de bolas, ainda que menores e pintadas com cores diferentes. Um mural da Tumba 17, em Beni Hasan, retrata duas meninas, frente a frente, praticando habilmente malabarismos com seis bolas pretas. Este mural figura entre muitos outros encontrados em outras tumbas, palácios e em outros locais, demonstrando a prevalência e vitalidade dos esportes egípcios.

Egyptian Ball
Bola Egípcia
The Trustees of the British Museum (Copyright)

A nobreza não apenas participava dos esportes mas, como todos os demais, apreciava assistir a eles. Entre as mais populares competições esportivas estava a corrida nas corredeiras, nas quais duas pessoas num pequeno bote desafiavam as águas do Nilo. Disputas de remo e natação, bem como luta livre e arremesso de lanças, também tinham alta popularidade.

Os homens apreciavam assistir a competições femininas de dança atlética, desfiles, natação e remo da mesma forma que o fazem atualmente Os exemplo mais famoso destas competições vem do Papiro Westcar (datado do Segundo Período Intermediário, c. 1782-1570 a.C.) e da história de Snefru e a Joia Verde (também conhecida como A maravilha que aconteceu no reinado do rei Snefru).

Neste conto, o rei sente-se desanimado e seu escriba-chefe sugere que ele vá passear de bote no lago, dizendo "[...] equipe um barco com todas as belas de câmara palaciana. O coração de sua majestade será reanimado à visão das remadoras à medida que elas remam acima e abaixo" (Simpson, 16). O rei aceita a sugestão, ordena que "vinte mulheres, as mais belas, com seios firmes, com cabelos bem trançados" sejam trazidas e, após passar a tarde com elas, "o coração de sua majestade ficou satisfeito com a visão delas remando" (Simpson, 17). Note-se que o prazer do rei aumentou com as mulheres despidas e enfeitadas somente com redes de pesca, mas essa seria uma indumentária adequada para aquela atividade, assim como se preferiria usar shorts para um passeio de bote nos dias atuais.

Narração de Histórias

Assim como seus jogos e esportes, os egípcios desfrutavam igualmente de outra forma de recreação, a narração de histórias. Embora o conto de Snefru e a Joia Verde destaque como o estado de espírito do rei se eleva ao observar as belas mulheres remando sobre o lago, o foco do conto está na joia verde que cai do cabelo de uma das remadoras nas águas do lago. Ela fica chateada e para de remar. O escriba-chefe do rei, que veio na viagem, afasta as águas do lado e recupera a joia. A história relata que "o lago tinha doze côvados de profundidade", mas o escriba proferiu um feitiço mágico que dobrou as águas sobre si mesmas para criar uma parede aquática que "totalizava vinte e quatro côvados depois de ter sido dobrada de volta" (Simpson, 18). A história, naturalmente, é uma reminiscência da cena no Livro do Êxodo bíblico, no qual Moisés divide o Mar Vermelho, e esses tipos de contos, abordando magia e maravilhas, estavam entre os mais apreciados pelos egípcios.

Tale of Sinuhe (Berlin 10499)
A História de Sinuhe (Berlim 10499)
L. Baylis (Copyright)

As histórias dos deuses, contos de heróis como Sinuhe, O Conto do Marinheiro Naufragado e as de fantasmas eram narradas em reuniões, festivais e festas. Essas histórias muitas vezes continham uma lição de moral, mas isso não diminuía seu valor como entretenimento ou a popularidade entre os ouvintes. O Conto de Setna e Taboubu, por exemplo, uma história muito popular, que data do primeiro milênio a.C., relata como um príncipe, cobiçando uma bela mulher, entrega tudo, incluindo sua família, para tê-la. Ele é enganado, no entanto, e se vê completamente despido em plena rua, depois de receber uma lição de respeito e prudência da deusa Bastet.

Esta história, como as demais, refletia os valores culturais, mas também visava a melhorar a alma de uma pessoa da mesma forma como os esportes mantinham a pessoa fisicamente em forma e os jogos proporcionavam relaxamento e distração. Todas as atividades recreativas dos egípcios tinham como finalidade o divertimento, bem como o aperfeiçoamento física e espiritual da vida que, se bem vivida, seria perpetuada no paraíso do além-túmulo.

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Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Joshua J. Mark
Joshua J. Mark é cofundador e diretor de conteúdos da World History Encyclopedia. Anteriormente, foi professor no Marist College (NY), onde lecionou história, filosofia, literatura e redação. Ele viajou bastante e morou na Grécia e na Alemanha.

Citar este trabalho

Estilo APA

Mark, J. J. (2017, abril 11). Jogos, Esportes e Recreação no Egito Antigo [Games, Sports & Recreation in Ancient Egypt]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Recuperado de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1036/jogos-esportes-e-recreacao-no-egito-antigo/

Estilo Chicago

Mark, Joshua J.. "Jogos, Esportes e Recreação no Egito Antigo." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação abril 11, 2017. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1036/jogos-esportes-e-recreacao-no-egito-antigo/.

Estilo MLA

Mark, Joshua J.. "Jogos, Esportes e Recreação no Egito Antigo." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 11 abr 2017. Web. 25 dez 2024.