Arte do Período de Amarna

Artigo

Elsie McLaughlin
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 22 setembro 2017
Disponível noutras línguas: Inglês, francês, espanhol
Ouve este artigo
X
Imprimir artigo

De todos os faraós que governaram o antigo Egito, há um em particular que se destaca. No curso de seus 17 anos de reinado (1353-1336 a.C.), Akhenaton (ou Aquenáton) liderou uma revolução cultural, religiosa e artística que convulsionou o país, atirando pela janela uma tradição de milhares de anos e impondo uma nova ordem mundial. Após sua morte, seu nome foi omitido da lista de reis e suas imagens profanadas e destruídas. A partir dos fragmentos de evidências que sobreviveram, os egiptólogos conseguiram reconstruir a história de sua vida e reinado, um período de revolução espiritual e experimentação como nunca antes na história egípcia. Sob sua supervisão, a arte egípcia passou por uma transformação monumental, com séculos de convenções rígidas abandonadas em favor de uma nova abordagem artística, altamente estilizada e imbuída de significado religioso.

Statue of Akhenaten
Estátua de Akhenaton
Elsie McLaughlin (CC BY-NC-SA)

Reinado Inicial de Amenófis IV

Segundo filho do faraó Amenófis III (ou Amenhotep/Amenotepe), Akenaton (originalmente Amenófis IV), não fora destinado ao trono. Seu irmão mais velho, o príncipe Tutmósis, era o herdeiro natural, mas, após sua morte inesperada, o jovem Amenófis viu-se de repente no centro das atenções políticas. Em seguida a um breve período de corregência, Amenófis III morreu em 1353 a.C. e Amenófis IV (ou Amenhotep/Amenotepe) ascendeu ao trono. Com sua Esposa Principal Nefertiti ao lado, o novo faraó iniciou o que parecia um reinado convencional: dedicou monumentos a Amon, fez acréscimos ao complexo do templo de Karnak e até realizou um festival Sed no Ano 3 do Reinado. Porém, nada havia de convencional no governo de Amenófis IV e não demorou muito para que o rei começasse a mostrar suas verdadeiras intenções. O faraó era um devoto fanático de Aton, uma divindade representada pela forma física do disco solar. Diversamente de outros deuses e deusas egípcios, Aton não possuía características humanas e não assumia forma antropomórfica. Sob a direção de Amenófis, este culto marginal logo se tornou a maior seita religiosa egípcia.

Remover publicidades
Publicidade
No Ano 5 do Reinado, o faraó deixou de lado todos os disfarces e declarou Aton a divindade oficial estatal do Egito.

No Ano 5 do Reinado, o faraó deixou de lado todos os disfarces e declarou Aton a divindade oficial estatal do Egito, direcionando o foco e financiamento do sacerdócio de Amon para o culto do novo disco solar. Ele até mudou seu nome de Amenófis (“Amon está satisfeito”) para Akhenaton (“A serviço de Aton” ou "De grande uso para Aton") e ordenou a construção de uma nova capital, Akhetaton (“Horizonte de Aton”) no deserto. Situada no moderno sítio de Tel el-Amarna, Akhetaton ficava entre as antigas cidades de Tebas e Mênfis, na margem oriental do Nilo.

A Arquitetura do Período de Amarna

Não muito depois de subir ao poder, Akhenaton/Amenófis IV ordenou a construção de um novo complexo de templos adjacente ao de Karnak (na moderna Luxor). Este novo projeto, porém, seria uma entidade separada do templo de Amon, o que ficou claro pelo fato de que o sítio se localizava além do perímetro de Karnak. Denominado Gempaaton (“Aton é encontrado”), o novo complexo de templos não se parecia com nada do que fora feito antes. Em vez de ser composto de santuários privados e fechados, os pátios ao ar livre de Gempaaton permitiam que a luz solar de Aton banhasse diretamente o complexo.

Remover publicidades
Publicidade

Smaller Aten Temple, Amarna
Templo Menor de Aton, Amarna
Institute for the Study of the Ancient World (CC BY)

Seguindo as pegadas de Gempaaton, o Grande Templo de Aton, em Amarna, tornou-se outro exemplo de um templo "ao ar livre". Cercado por um grande muro, o complexo de templos consistia em duas estruturas principais: o Santuário, localizado na seção oriental, e o Templo Longo, na parte ocidental. A orientação leste-oeste pela qual o templo foi planejado já sinalizava o trajeto que Aton fazia através do céu diariamente. O Santuário compunha-se de dois pátios, o segundo dos quais abria-se ao ar livre e abrigava o altar onde Akhenaton e Nefertiti apresentavam suas oferendas particulares ao disco solar. O Templo Longo consistia num pátio em colunata e mais de 900 pequenos altares, abertos ao ar livre, nos quais os sacerdotes queimavam oferendas a Aton. Ao norte do Grande Templo de Aton havia um segundo templo, menor, situado no centro de Amarna, próximo ao palácio e à residência real do rei. Este segundo templo também acompanhava o esboço de Gempaaton e do Grande Templo de Aton, ou seja, construído de forma a ficar exposto diretamente à luz solar todo o tempo.

Os múltiplos palácios de Amarna foram construídos com tijolos de barro e pintados com cenas coloridas e decorativas de plantas, vida silvestre e a família real. Estas estruturas incluíam muitos pátios abertos e pórticos com colunatas, bem como grandes átrios decorados com colossais estátuas de pedra de Akhenaton e Nefertiti.

Remover publicidades
Publicidade

Os Retratos de Akhenaton

Os artefatos do reinado de Akhenaton são reconhecíveis instantaneamente devido ao singular estilo artístico. Entre as peças mais impressionantes estão aquelas representando o próprio faraó, muitas dos quais levaram egiptólogos a questionar seu estado da saúde e aparência física. Um exemplo claro vem de Gempaaton: uma enorme estátua de corpo inteiro de Akhenaton exibindo características peculiares. O rosto do rei é longo e magro, com olhos estreitados e grandes lábios cheios. Sua figura é igualmente estranha e fora de proporção, com braços compridos e estreitos, longos dedos, barriga proeminente e quadris e seios femininos. Esta estátua em particular está fragmentada, cortando o faraó na altura dos joelhos mas, a partir de outras representações de Akhenaton que sobreviveram, pode ser inferido que as pernas do faraó estreitavam-se a partir de coxas largas até as panturrilhas finas, terminando num pé alongado. A um olhar de relance, tal estátua é chocante por se desviar tanto do caminho adotado pela típica convenção artística egípcia. Em vez apresentar a imagem de um rei jovem, bem-apessoado e viril, as representações artísticas de Akhenaton enviam uma mensagem muito diferente. Com tais estranhas proporções corporais e características faciais, o faraó surge como efeminado, fraco e doentio.

Colossal Statue of Amenhotep IV
Estátua Colossal de Amenófis IV
Dmitry Denisenkov (CC BY-SA)

Por que Akhenaton escolheu ser apresentado aos súditos desta forma? Como faraó, ele tinha completo controle sobre a produção e distribuição de obras de arte e, portanto, certamente era a força motriz por trás destas ousadas escolhas criativas. Estátuas como o colosso de Geempaaton levaram muitos historiadores a especular sobre a vida de Akhenaton e a possibilidade do faraó estar sendo afligido por uma doença genética. Gerações de casamentos consanguíneos e entre irmãos e irmãs, durante a 18ª Dinastia, fazem com que esta teoria seja possível. Porém, a maioria dos egiptólogos argumenta que o aspecto impactante de Akhenaton tem mais a ver com o simbolismo religioso do que com a representação da verdadeira aparência física do rei.

Como muitos de seus predecessores, Akhenaton acreditava ser um deus vivo. A maioria dos faraós alinhava-se com os deuses do panteão tradicional do Egito, como Hórus, mas Akhenaton, seguindo suas crenças, decidiu se associar com Aton; um dos muitos epítetos do rei era "O Ofuscante Aton", e ele acreditava encarnar a manifestação física do disco solar na terra. Diversamente de outras divindades egípcias, Aton era neutro; o disco solar, como um objeto físico, não tinha sexo discernível. É razoável concluir, portanto, que Akhenaton (uma forma de divindade por si mesmo) escolheu ser representado da mesma maneira andrógina. As evidências históricas e arqueológicas comprovam claramente que Akhenaton era um homem fértil (teve ao menos seis filhas e um filho), mas a inclusão de tais características femininas nas representações artísticas do rei enviavam uma mensagem poderosa, conectando o faraó à essência do próprio Aton.

Remover publicidades
Publicidade

Queen Nefertiti
Rainha Nefertiti
Philip Pikart (CC BY-SA)

Durante o curso do reinado de Akhenaton, sabe-se que pelo menos dois escultores diferentes estiveram a serviço do rei. O primeiro, um homem chamado Bak, recebeu o crédito pelas peças mais antigas e radicais do estilo de Amarna (isto é, o colosso de Gempaaton). Sugeriu-se que o período imediatamente seguinte ao Ano 5 do Reinado serviu como um "época de experimentação", no qual Akhenaton tentou ir além dos limites da convenção artística egípcia tanto quanto podia, o que resultou na produção de algumas das mais radicais e estilizadas peças do Período de Amarna. Nos anos finais do domínio de Akhenaton, Bak foi substituído por outro escultor, Tutmósis, que trouxe uma abordagem mais moderada ao seu trabalho. Itens recuperados da oficina de Tutmósis mostram que o artista preferia um estilo mais realístico e menos exagerado do que seu predecessor, o que pode ser melhor exemplificado pelo icônico busto de Nefertiti, em exibição atualmente em Berlim.

As Imagens de Nefertiti e da Família Real

Um dos mais tocantes e fascinantes aspectos da arte durante o Período de Amarna é como Akhenaton e sua família são apresentados. No tradicional trabalho artístico egípcio, as figuras são usualmente bastante rígidas e contidas, geralmente participando de cerimônias religiosas ou eventos políticos solenes. Raramente se mostra a família real num ambiente casual, passando tempo juntos em cenas cotidianas. Durante o reinado de Akhenaton, porém, tudo isso mudou. O faraó quase sempre estava acompanhado por suas filhas e da sua Grande Esposa Nefertiti, esta constantemente a seu lado. Com frequência, retrata-se a família fazendo oferendas a Aton, mas há também cenas nas quais comem juntos e relaxam no palácio. As jovens princesas aparecem muitas vezes brincando em torno dos tronos dos pais ou embaladas em seus colos. Nefertiti (e suas filhas) são pintadas com o mesmo tom vermelho ocre do marido, uma cor tipicamente reservada aos homens e, assim como o faraó, com mãos e pés bastante detalhados, algo muito raro (antes desta época, os egípcios não faziam questão de distinguir os membros direito e esquerdo).

Akhenaten & Nefertiti
Akhenaton e Nefertiti
Elsie McLaughlin (CC BY-NC-SA)

Existem incontáveis estelas e esculturas de Akhenaton e Nefertiti mimando um ao outro e de mãos dadas: num exemplo, a rainha até senta no colo do rei. O casal também aparece em relevos conduzindo carros e atirando presentes aos súditos da “Janela das Apresentações” do palácio de Amarna. Este tipo de retrato carinhoso e realisticamente casual de um faraó não tinha precedentes na história egípcia.

Remover publicidades
Publicidade

Igualmente sem precedentes é a importância simbólica dada à Rainha Nefertiti na arte do Período de Amarna. Em vez dos retratos tradicionais como uma figura em menor escala, atrás do marido, Nefertiti aparece com frequência na mesma escala do faraó, uma escolha artística ousada que denota sua grande influência e importância na corte. E isso realmente se confirmou: durante os últimos anos do reinado de Akhenaton, ele apontou Nefertiti como sua corregente oficial, essencialmente tornando-a como um segundo “rei”, no mesmo nível do soberano.

Akhenaten and the Royal Family Blessed by Aten
Akhenaton e a Família Real abençoados por Aton
Troels Myrup (CC BY-NC-ND)

Para enfatizar ainda mais tanto sua elevada posição quanto o relacionamento estreito do casal, as mais antigas representações artísticas de Akhenaton e Nefertiti trazem o rei e a rainha como figuras quase idênticas. Poucos detalhes diferenciam os dois governantes, tais como as coroas (Akhenaton preferia o adorno de cabeça khat, enquanto Nefertiti favorecia uma coroa azul achatada), estilos de perucas (variações da peruca de corte curto, no estilo Núbio, tinham a preferência do casal) e o comprimento e/ou estilo de seu vestuário. Esta escolha ousada, uma vez mais, inspirava-se no simbolismo religioso.

Aparecendo como figuras idênticas, Akhenaton e Nefertiti alinhavam-se com as divindades gêmeas Shu e Tefnut, respectivamente. O adorno de cabeça achatado de Nefertiti associava-se tradicionalmente à deusa Tefnut. Akhenaton claramente queria estabelecer uma relação entre ele e sua rainha com estas divindades primordiais da criação que, junto com Aton, representavam as forças da vida e renascimento. O rei e a rainha, em essência, tornavam-se o "Pai" e a "Mãe" da terra e dos céus, colocando-se, ao lado de Aton, como uma trindade. Assim como as representações do faraó se tornaram mais moderadas e realistas durante os últimos anos de seu reinado, a tendência do rei e rainha aparecerem como figuras idênticas desapareceu, embora a associação com as divindades gêmeas permanecesse a mesma.

Daughter of Akhenaten
Filha de Akhenaton
Osama Shukir Muhammed Amin (Copyright)

No que se refere aos túmulos privados e monumentos dos habitantes não-reais de Amarna, as imagens da família real desempenham um papel interessante. Onde em ocasiões anteriores haveria imagens de Hórus, Amon, Ísis e outras divindades tradicionais ao longo dos muros das câmaras funerárias da elite, agora viam-se Akhenaton, Nefertiti e suas crianças. Naturalmente, imagens de Aton estavam sempre presentes e o disco solar sempre tinha precedência sobre quaisquer personagens humanos retratados ao seu lado. Porém, durante o período de Amarna, a família real substituiu completamente os deuses que haviam decorado as tumbas egípcias por séculos. Mesmo no sarcófago de pedra do próprio faraó, imagens de Nefertiti substituem as das deusas tradicionais. Akhenaton, associando-se com Shu e Aton, e Nefertiti, com Tefnut, efetivamente apresentavam-se, assim como sua família, como deuses vivos. Que necessidade havia, portanto, de imagens de outras divindades nos muros das tumbas dos súditos? O faraó, sua rainha e sua prole eram uma extensão sagrada de Aton na terra e, desta forma, deviam ser adorados por direito próprio, agindo como intermediários entre Aton e o restante da população.

O Fim de uma Dinastia

Após 17 anos no trono, o faraó Akhenaton morreu em 1336 a.C.. Foi sucedido pelo misterioso Smenkhkare (ou Semencaré, um faraó de reinado curto que muitos egiptólogos acreditam ter sido Nefertiti) e, em seguida, pelo jovem filho de Akhenaton, Tutankhaton. Logo após a morte de Akhenaton, o povo egípcio não tardou a manifestar sua oposição às reformas religiosas radicais do “rei herético”. Favorecendo a estabilidade e a velha ordem, Tutankhaton transferiu a capital de volta a Mênfis e restabeleceu o culto ao panteão politeísta egípcio. Em poucos anos, Amarna, a gloriosa “Horizonte de Aton” de Akhenaton, tinha sido abandonada, seu rei e rainha sepultados e esquecidos. Numa tentativa adicional de se distanciar do legado de seu pai, o rei menino mudou seu nome de Tutankhaton (“Imagem Viva de Aton”) para Tutankhamon ("Imagem Viva de Amon"). Sua esposa e meia-irmã, Ankhesenpaaton, acompanhou-o com a mudança de nome para Ankhsenamon (“Sua Vida é de Amon”).

Tutankhamun
Tutankhamon
Dalbera (CC BY)

Durante seu reinado, o faraó Tutankhamon promoveu grandes esforços no sentido de restaurar o Egito ao estado pré-Amarna, uma campanha liderada pelos reis subsequentes, Ay e Horemheb. Ainda que o estilo artístico de Amarna tenha continuado durante este período de transição (o que é particularmente evidente nos murais que decoram a câmara funerária de Tutankhamon), no fim das contas a tradição artística prevaleceu e a arte egípcia, a partir da 19ª Dinastia e nas seguintes, volta a aderir em grande parte às convenções históricas. Com a morte do faraó Horemheb, em 1292 a.C., terminou a própria 18ª Dinastia: seu herdeiro, Ramsés I, fundaria uma nova linhagem dinástica, conduzindo o Egito rumo a uma era de ouro de poderio militar e prosperidade econômica. Em menos de 50 anos, quase todos os traços de Akhenaton, seu reinado controverso e as convenções artísticas que o definiam haviam sido varridos da existência.

Remover publicidades
Publicidade

Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Elsie McLaughlin
Elsie McLaughlin é uma aspirante a egiptóloga, cujas áreas de interesse incluem o Período de Amarna, gênero, realeza feminina e a história do Novo Império inicial, bem como o relacionamento entre as mulheres reais e a guerra no Novo Império.

Citar este trabalho

Estilo APA

McLaughlin, E. (2017, setembro 22). Arte do Período de Amarna [The Art of the Amarna Period]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1110/arte-do-periodo-de-amarna/

Estilo Chicago

McLaughlin, Elsie. "Arte do Período de Amarna." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação setembro 22, 2017. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1110/arte-do-periodo-de-amarna/.

Estilo MLA

McLaughlin, Elsie. "Arte do Período de Amarna." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 22 set 2017. Web. 03 dez 2024.