As caravanas que cruzavam as grandes dunas do Deserto do Saara tiveram início na antiguidade, porém atingiram sua era de ouro a partir do século IX EC. Em seu auge, as caravanas consistiam em milhares de camelos viajando pelo Saara, do Norte Africano para as savanas do sul e de volta novamente, em uma jornada perigosa que podia levar meses. Parando ao longo do caminho em oásis vitais, as caravanas eram amplamente controladas pelos berberes que atuavam como intermediários de comódites desejadas como sal, ouro, cobre, peles, cavalos, escravos e itens de luxo. O comércio transaariano trazia consigo conhecimentos em arte, arquitetura e religião, transformando diversos aspectos da vida cotidiana de cidades em partes até então isoladas da África.
O Camelo
Embora o norte da África tenha possuído um animal camelídeo, os Camelus thomazi, eles foram extintos durante a Idade da Pedra. O dromedário (Camelus dromedarius), aquele que possui apenas uma corcova, talvez tenha sido introduzido no Egito pela Arábia durante o século IX AEC, e ao restante da África do Norte não antes do século V AEC (embora datas mais precisas sejam disputadas entre historiadores). Os camelos não se tornaram comuns, entretanto, até o século IV EC. Caravanas de cavalos e burros haviam cruzado partes do Saara na antiguidade, mas seriam os resistentes camelos que permitiriam os povos antigos a carregarem mais mercadorias através do inóspito Saara e mais rápido, reduzindo custos e riscos. A Enciclopédia de História Antiga tem o seguinte resumo a respeito das vantagens do transporte com camelos:
O valor do camelo não está só confinado à sua alta capacidade de adaptação às condições severas do deserto e a regulação de água e calor por meio de suas glândulas sudoríparas: sua habilidade de viajar longas distâncias chegando a até 48 km por dia e sua alta capacidade de carga (240 kg) o transformam num “navio do deserto”, em comparação com cavalos, burros e mulas que carregam aproximadamente 60 kg. De fato, a expectativa de vida do camelo de 50 anos ainda ultrapassa a do burro (30-40 anos) e a do cavalo (25-30 anos). (1281)
Do século VIII EC em diante, os marroquinos estariam reproduzindo camelos em uma escala enorme e eles até criaram uma raça cruzada entre o dromedário e o camelo bactriano (Camelus Bactrianus) de duas corcovas, da Ásia. O resultado desses experimentos produziu duas variantes de dromedários: um camelo elegante e rápido que servia para serviços de mensagens e outro mais pesado, lento e que conseguia carregar mais peso do que um dromedário puro.
As Caravanas na Antiguidade
Muito antes das grandes caravanas transaarianas do período medieval, havia um comércio mais localizado entre os povos nômades do deserto e as tribos das savanas ao sul do Saara, frequentemente chamada de região do Sudão. As placas de sal do próprio Saara, que eram extremamente necessárias para as savanas carentes do mineral, eram trocadas por cereais (e.g. arroz, sorgo e painço), que não cresciam no deserto.
O historiador grego Heródoto, escrevendo no século V AEC (Histórias, Bk 4. 181-5), observou uma rota de caravana que ia de Tebas no Egito para o Níger (embora seja mais provável que Mênfis tenha sido o ponto de partida). O escritor romano Plínio o Velho (23 - 79 EC) observou em sua História Natural (5.35-8) que as caravanas eram comandadas pelos garamantes, provavelmente berberes antigos, que viviam ao sul da Líbia. Os garamantes, em controle dos oásis de palmeiras em Fezzan, agiam como intermediários entre os povos da África do Norte e a África subsaariana. Este arranjo continuaria ao longo da história do comércio transaariano porque aqueles que controlavam o deserto, que conheciam os segredos de enfrentar seus desafios formidáveis, também controlavam o comércio.
A Tripolitânia Romana (hoje a Líbia) era suprida com ouro, marfim, ébano, madeira de cedro e feras exóticas destinadas aos circos, enquanto o azeite de oliva e itens de luxo como cerâmicas finas, vidraçarias e tecidos eram enviados ao sul em troca. Mais a leste, também havia caravanas conectando Darfur no noroeste sudanês a Assiut, no Nilo, desde pelo menos o século I EC. Conhecida como a Darb al-Arbein ('Estrada de 40 Dias), ela trazia marfim e elefantes do interior da África e prosperou até a Antiguidade Tardia.
Rotas de Comércio Transaarianas
As caravanas realmente grandes que viajavam no mínimo 1000 quilômetros (620 milhas) para cruzar o Saara inteiro de fato passaram a acontecer a partir do século VIII EC com a ascensão dos estados islâmicos do norte da África e impérios como o Império de Gana da região sudanesa (séculos VI - XIII EC). As rotas mudaram ao longo dos séculos conforme as dunas de areia do deserto, enquanto impérios ascendiam e caíam em ambos os lados do Saara, e ao passo que novos recursos foram descobertos e explorados no comércio que nunca cessou.
A primeira rota parece ter sido entre Wadi Draa (sul do Marrocos) e o Império de Gana (sul de Mali) na metade do século VIII EC, passando por uma área do Saara controlada pelos berberes sanhaja. Dentro de 50 anos duas outras rotas principais foram estabelecidas que passavam por territórios do Saara que pertenciam aos tuaregues, um ramo dos sanhaja. Estas eram do oeste da Argélia para o Reino de Songai na curva do Rio Níger, e da Líbia para o Lago Chade (uma rota que era abençoada por vários pequenos oásis e um muito grande, Kawar). Em meados do século XI EC, estabeleceu-se uma grande rota entre as cidades Almorávidas de Sijilmassa ao norte do Saara e Audagoste no sul. No século seguinte, com a ascensão dos Almóadas na África do Norte, Ualata substituiria Audagoste no extremo sul da rota. Ualata ficava mais a leste, e assim em melhor posição para agir como um ponto de coleta após a descoberta de novas minas de ouro. Gao e Timbuktu às margens do Rio Níger agora também atraíam comércio suficiente para se tornarem destinos finais de caravanas que saíam do que hoje é a Tunísia e o sul da Argélia. As grandes cidades de Marraquexe, Fez, Túnis e Cairo do Norte da África foram todas importantes pontos de partida ou destino para as caravanas transaarianas.
A partir de meados de 1450 EC navios portugueses navegavam pelo litoral da África e ofereciam uma alternativa às rotas das caravanas transaarianas. E em 1471, esses navios passariam a ter acesso à apropriadamente chamada Costa do Ouro no sul da África Ocidental. Entretanto, a ascensão do Império Songai (1460 - c. 1591 EC) garantiu que houvesse ainda um enorme suprimento de mercadorias para os mercadores saarianos explorarem na região da savana.
Navegação no Saara
Uma caravana típica podia ter 500 camelos, mas algumas das caravanas anuais chegavam a ter até 12.000 camelos. Essas grandes caravanas normalmente operavam na melhor estação para a viagem, o inverno. Para evitar o calor do sol do meio-dia, os comboios normalmente partiam ao amanhecer ao som de trompas e tambores, descansavam em tendas sombreadas durante meio do dia e seguiam novamente ao fim da tarde, continuando o caminho até bem depois de escurecer.
A jornada pelo Saara podia levar de 40 a 60 dias, e só era possível pelas escalas em oásis ao longo do caminho, mas mesmo com essas paradas de água a viagem era brutal e perigosa. O fato de haver rotas estabelecidas, e que escritores árabes medievais foram tão específicos em mapeá-las, é uma forte evidência de que qualquer desvio improvisado, a tomada de atalhos, a perda do próximo oásis por má navegação ou uma tempestade de areia, era certo de se tornar um desastre. Outros perigos envolviam bandidos, serpentes venenosas, escorpiões, e demônios sobrenaturais que o povo do deserto acreditava assombrar algumas partes do Saara.
O maior problema, claro, era a água. Uma pessoa precisa de no mínimo um litro de água por dia no deserto sob ótimas condições, isto para mal manter sua sobrevivência. O consumo normal é de 4.5 litros por dia. Felizmente, os camelos não necessitam beber por vários dias, embora ao chegar numa fonte de água eles bebam prodigiosamente. O principal limite de uma caravana, então, era quanta água ela conseguiria transportar e quão rápido ela conseguiria chegar à próxima fonte da rota.
Assim como os condutores de camelos e escravos para realizar tarefas domésticas básicas, as caravanas tinham alguns oficiais como um escriba para tomar nota das transações, guias especialistas para áreas específicas da rota, mensageiros, e um imam para fazer as preces diárias. O mais importante era o líder da caravana, chamado Khabir, que tinha total autoridade quando em rota. Como na maioria das posições de poder, também havia sérias responsabilidades, e o Khabir era passível de culpa por quaisquer perdas e acidentes (a menos que ele pudesse demonstrar sua inocência). O historiador H. J. Fisher descreveu as qualidades que um bom Khabir precisava ter:
Ele sabia as rotas do deserto e onde havia água, e ele era capaz de encontrar o caminho guiado pelas estrelas à noite, e se necessário pelo cheiro e pela textura da areia da vegetação. Ele tinha que compreender as regras de higiene do deserto, antídotos para veneno de serpentes e escorpiões, como curar doenças e cuidar de fraturas. Ele tinha que conhecer as várias cidades e tribos com as quais a caravana teria que negociar ao longo do caminho, e dessa maneira um Khabir responsável poderia consolidar sua posição com casamentos estratégicos em diversas localidades, ou com diversas tribos.
(citado em Fage, 267)
Além das estrelas e o cheiro da areia e da vegetação, um berbere do deserto, assim como hoje, usava muitos outros indicadores de orientação como a inclinação do sol e da lua, a configuração da terra, montanhas no horizonte, as sombras das dunas, a direção do vento, o borrifo de areia soprado dos picos das dunas, antigas ravinas erodidas, a distribuição de rochas e seixos, a presença de miragens, e a posição do esterco de camelo que é de formato pontudo sempre apontando para a próxima fonte de água.
Transportar-se pelo deserto, então, era certamente um desafio, guiar camelos carregados de placas de sal era suficientemente difícil, também, mas se havia escravos sendo transportados, tornava-se uma viagem de desgaste para todos, como registrou um escritor do século XI EC a respeito dos problemas de um líder de caravana no meio da jornada:
Ele estava exausto com seus homens e mulheres escravos. Esta mulher havia emagrecido, esta outra estava faminta, outro estava doente, aquele havia escapado, este sofria com o verme-da-guiné. Quando eles acampavam, tinham muito com o que ocupá-lo.
(citado em Fage, 639)
Heródoto descreveu caravanas que paravam a cada 10 dias em um conhecido oásis, os salva-vidas do deserto. Alguns desses oásis podem consistir de meros poços e algumas casas, mas outros como Awdila, o grupo Fezzan, e o grupo Kuffa (todos na Líbia), tinham grandes extensões de vegetação exuberante, de fato uma bela visão para os olhos doloridos do viajante do deserto. Aqui havia tamareiras, limoeiros, e figueiras, assim como trigo e videiras cultivadas com irrigação. Por outro lado, muitos oásis simplesmente desapareceram sob o movimento das areias, ou suas águas secaram e eles foram abandonados à próxima tempestade de areia. As paradas para reabastecimento em oásis não eram gratuitas, as tribos que os controlavam cobravam taxas para a movimentação de mercadorias por seus territórios. Para assegurar que nenhum forasteiro se envolvesse na administração lucrativa das caravanas, os povos do Saara geralmente cobriam os poços menores do deserto com areia para escondê-los.
Houve tentativas de tornar a jornada menos inóspita ao buscar aumentar as escassas ofertas da natureza ao longo do caminho. Abd al-Rahman, o governador do Magrebe (g. 747-755 EC), ordenou que uma série de poços fossem escavados em uma rota do sul do Marrocos até a região do Sudão. A água era trazida à superfície usando cordas feitas de pelo de camelo e baldes de couro, puxados por um camelo que seguia em linha reta.
Mercadorias Comercializadas
O que exatamente valia o esforço de ser transportado por longas distâncias dependia muito das específicas elites do norte e do sul do deserto, algo que se transformava não somente pelos gostos e pela moda, mas também pela ascensão e queda de estados e seus acessos às mercadorias que podiam ser trocadas.
O sal era a principal comódite que seguia para o sul e era trocada por ouro, marfim, peles e escravos (adquiridos de tribos africanas conquistadas por impérios subsaarianos). Mercadorias eram acumuladas por toda a região da África Ocidental e encaminhadas ao longo dos rios Níger e Senegal para 'portos' de comércio como Timbuktu. Ao passo que a região do Sudão via a ascensão de novos impérios e mais ricos como o Império de Mali (1240-1645 EC) e o Império Songai, também uma elite abastada demandava cada vez mais mercadorias exóticas e mais caras vindas da África do Norte e do Mediterrâneo.
Além do sal, as caravanas levavam para o sul cerâmica vitrificada (vasos de luxo, xícaras, candeeiros a óleo e queimadores de incenso), pedras preciosas e semipreciosas (especialmente granada e amazonita), búzios e fios de cobre eram utilizados como moeda, lingotes de cobre, cavalos, produtos manufaturados, panos finos, miçangas, corais, tâmaras, uvas passas e artigos de vidro (xícaras, taças e frascos de perfume). Enquanto os impérios do Sudão aumentavam sua influência e novos poderes se erguiam como Hauçalândia, também isto trazia novas mercadorias ao comércio transaariano como nozes-de-cola (um estimulante suave), penas de avestruz, perfumes e tabaco.
Legado
A principal e mais imediata consequência do comércio transaariano foi que ele conferiu aos estados poderes tremendos em suas respectivas regiões enquanto eles tiveram acesso à mercadorias tidas como altamente valiosas por suas próprias populações e as de seus estados competidores. Estas mercadorias podiam ser consumidas para realçar o prestígio das classes dominantes ou comercializadas ou taxadas, o que tornava as elites governantes ainda mais ricas e, através do pagamento de exércitos, as colocava em uma posição ainda mais poderosa em relação às tribos subjugadas e estados menores. Mais sutilmente, havia outro tipo de bagagem que além das mercadorias que vinham com os mercadores que cruzavam o Saara. Ideias, tecnologia e a religião também se propagaram.
Embora a extensão da influência cultural de cada lado seja difícil de calcular com precisão, sabe-se de fato que o Islã foi introduzido à região do Sudão por meio de comerciantes a partir do século IX EC. Mesquitas e planejamentos urbanos islâmicos começaram a ser vistos nas cidades sudanesas. A adoção de balanças de precisão com pesos de vidro por algumas culturas sudanesas, quase certamente em resposta à necessidade de se pesar ouro em pó. Entretanto, algumas coisas pareciam não ter muita aderência. Por exemplo, a importação da cerâmica mediterrânea teve poucos efeitos no design e nas formas da cerâmica do Sudão. Assim, também, melhores fornos, capazes de atingir temperaturas mais altas foram revelados pela arqueologia no norte, mas não chegaram a ser adotadas no Sudão. Em outra direção, a técnica do entulho de barro para preencher a cavidade das paredes desenvolvida no Sudão pode ter sido adotada no norte.
As caravanas, embora em uma escala muito menor do que no auge, ainda operam hoje. O sal de Taudeni, no Saara, ainda é transportado por caravanas de camelos tuaregues, as placas de 90 kg são destinadas para as refinarias de Bemako em Mali. Veículos de quatro rodas e telefones por satélite podem ser de enorme valor para os viajantes modernos do deserto, mas o camelo ainda se mantém como uma das maneiras mais confiáveis de se alcançar e transportar mercadorias nas partes mais remotas do Saara
Com agradecimentos a Samuel Santos por sua assistência editorial ao preparar a tradução deste artigo para publicação.