Unam Sanctam (1302) foi uma bula papal publicada pelo Papa Bonifácio VIII (pont. 1294-1303) exigindo a completa submissão de todas as pessoas, iincluindo reis, à autoridade e determinações do Papa. Como a Igreja era vista como guardiã das chaves para o Céu e Inferno, e o Papa o chefe da Igreja, não obedecer ameaçava a salvação.
O poder da Igreja medieval foi mantido estimulando o inato temor do homem pela morte e se colocando como a única via de salvação ao inferno. Todos os sistemas pagãos do passado possuíam alguma versão do julgamento após a morte, pelo qual os “bons” seriam gratificados e os “maus” punidos. O cristianismo também assumiu este conceito, mas com um passo a mais ao afirmar que não havia a “pessoa boa” e que o destino final da alma era inteiramente uma questão da clemência de Deus ao administrar a justiça divina.
Em Romanos 3:10 está claro: “não há nenhum justo, não há sequer um” e este conceito foi desenvolvido em 3:23: “com efeito, todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus.” O autor da Carta aos Romanos, São Paulo, continua este tema no Capítulo 6 quando expõe como uma vez que alguém aceite Cristo como salvador, ele é batizado na morte e ressurreição de Cristo, e o velho pecador é renascido (Romanos 6:3-11). O restante de Romanos 6 é uma admoestação a respeito do pecado, encerrando com a famosa linha, "Porque o salário do pecado é a morte, enquanto o dom de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Romanos 6:23).
Com estas escrituras e outras em mente, a Unam Sanctam pretendia, que, consiederando que ninguém é merecedor do céu e somente a Igreja, com o Papa à sua frente, pode prpriciar a salvação, mesmos reis deverão se submeter completamente ao Papa. A nobreza rejeitou a bula e esta foi amplamente ignorada e a monarquia continuou a governar sem a interferência papal. A Unam Sanctam é vista como uma das mais diretas tentativas da Igreja medieval em assegurar seu controle sobre os assuntos temporais.
Autoridade da Igreja
Um dos primeiros encantos do cristianismo era uma comunhão direta com Deus através de Jesus Cristo. Cristo, como Paulo esclarece aos atenienses nos Atos dos Apóstolos, era de que qualquer um poderia falar para Cristo do próprio coração, andando pela rua ou em uma congregação de pessoas com a mesma fé, porém ninguém precisaria ir a um templo ou a um bosque sagrado e fazer sacrifícios para ser ouvido pelo Divino. Deus, por meio da intercessão de Jesus Cristo, estaria sempre ouvindo.
Após Constantino, o Grande (rein. 306-337 d.C) legalizar a Igreja no século IV d.C., ela evoluiu para uma poderosa entidade política e social e Deus já não mais poderia ouvir, a menos que a pessoa fosse um membro importante ou respeitável da Igreja. Para ser um membro respeitável, a pessoa precisava andar dentro das regras da Igreja. As advertências de Paulo em Romanos e em outros locais a respeito da natureza pecaminosa da humanidade e a necessidade de salvação, junto com o medo humano da morte, fez da Igreja – corpo representativo de Deus na terra – uma necessidade absoluta. Uma pessoa em pecado, ignorante da doutrina da Igreja, não tinha esperança de entender a vontade de Deus ou o significado das Escrituras, necessitando a intervenção de um sacerdote.
O sacerdote da paróquia derivava seu poder da hierarquia da Igreja acima dele, indo através dos cânones, legados, bispos, cardeais até ao Papa – sucessor do apóstolo São Pedro – e o único homem na Terra que pretenderia poder falar para Deus. O supremo poder do Papa, no entanto, nem sempre agradava a aristocracia e a classe governante europeias, que observavam que a vontade de Deus e o auto interesse do Papa muitas vezes curiosamente se combinavam.
Enquanto continuava a chamar a atenção de sua própria necessidade vital para a população como um todo, o Papado reconheceu que precisava de alguma contundente evidência para convencer obstinados monarcas a colaborarem com os desejos dele. A Igreja exigia alguma autoridade temporal para comprovar sua pretensão a autoridade espiritual, mesmo sobre um monarca, mas também precisava tornar claro que seria somente através da submissão total à Igreja que alguém poderia esperar a salvação do inferno. Dois documentos da Idade Média serviram a este objetivo, sendo um deles a Doação de Constantino e o outro, o Unam Sanctam (Uma Santa Igreja), considerada a principal afirmação da autoridade espiritual absoluta da Igreja Católica.
A Doação de Constantino
A Doação de Constantino era um documento afirmando que Constantino, o Grande, que havia legalizado o cristianismo e o fez religião de Estado em Roma, havia “doado” sua autoridade para a Igreja em agradecimento por ter sido curado de lepra devido à sua sincera conversão e batismo pelo Papa Silvestre I (pont. 314-335 d.C.). O documento deixava claro que o poder de Constantino como imperador, posteriormente concedido à Igreja, foi usado pelos papas para coagir os governantes europeus a concordar com as diretrizes da Igreja.
A primeira aplicação da Doação de Constantino parece ter sido logo após a subida ao trono de Pepino, o Breve, Rei dos Francos (rein. 751-768). O Papa Zacarias (pont. 741-752) esperava controlar o novo rei e as terras dos francos, porém morreu logo após Pepino assumir o poder. O sucessor, Papa Estêvão II (pont. 752-757), seguindo a mesma programação, é tido como tendo usado o documento para demonstrar a soberania da Igreja até mesmo sobre soberanos.
Se a Igreja deu ao rei seu poder, a Igreja podia facilmente retirá-lo. Pepino, o Breve, que era analfabeto, não saberia o que o documento dizia, nunca deu importância em saber se era legítimo, acabou respondendo com a Doação de Pepino, uma grande doação de terras ao Papado, na região que havia recentemente conquistado dos lombardos. A Doação também foi usada pelo Papa Adriano I (pont. 772-795) para coagir Carlos Magno (*742 +814) a seguir o exemplo de seu pai e doar terras à Igreja. Carlos Magno simplesmente ignorou o pedido.
O documento era uma falsificação, provavelmente sob a direção do Papa Estêvão II, porém ninguém saberia disso até o século XV. Muito embora muitos monarcas, por toda a Idade Média, contestassem o documento, eles não dispunham de recursos para tentar provar que era falso. O estudioso e sacerdote Lorenzo Valla (*c.1407 + 1457), demonstrou que era uma falsificação por uma cuidadosa avaliação do texto. Entre c.1439-1440, demonstrou que a linguagem utilizada no texto não era consistente com a do século IV em Roma e poderia ser datada, com certeza, para o século VIII, época de Estêvão II e Pepino, o Breve.
A Unam Sanctam
A Doação deixou claro que os monarcas deviam seu poder ao Papado, mas um rei, mesmo respeitando Constantino pelo seu legado, ainda podia questionar por que a Igreja e o Papado eram merecedores de tal honra – ou de qualquer honra – às custas de um monarca. Entre 1296-1302, um rei – Philip IV da França (rein. 1285-1314) – assim procedeu quando decidiu taxar o clero da França, desafiando a política tradicional. O Papa Bonifácio VIII (pont. 1294-1303) reagiu com uma bula papal proibindo o clero de pagar ao Rei qualquer coisa sem a aprovação do Papa. Philip IV respondeu com um embargo cortando significativas fontes de recursos do Papado.
A desavença entre o Papa e o Rei continuou até 1302, quando Bonifácio VIII publicou a Unam Sanctam, que dizia:
Encorajado pela fé, somos obrigados a crer e afirmar que a Igreja é una, santa, católica e, também, apostólica. Nela firmemente acreditamos e simplesmente confessamos que fora dela não há nem salvação e nem remissão dos pecados, como o Esposo nos Cânticos (6:8) proclama: “Uma, porém, é a minha pomba, uma só a minha perfeita; ela é a única de sua mãe, a predileta daquela que a deu à luz,” e ela representa um só corpo místico cuja Cabeça é Cristo e a cabeça de Cristo é Deus (1 Cor 11:3). Nela, então, há um único Senhor, uma única fé, um único batismo (Ef 4:5). Na época do Dilúvio, de fato, somente uma foi a arca de Noé, prefigurando uma única Igreja, cuja arca, com o telhado inclinado de só um côvado, tinha somente um piloto e guia, i.e. Noé, e lemos que, fora desta arca, tudo que existia na terra fora destruído.
Veneramos esta Igreja como única, pois disse o Senhor pela boca do profeta: “Salva, Oh Deus, minha alma da espada e meu único ser das patas do cão,” (Sl 21:20). Ele orou por sua alma, que é ele mesmo, corpo e coração; e este corpo, a Igreja, Ele a chamou única devido à unidade do Esposo, da fé, dos sacramentos e da caridade da Igreja. Este é o manto do Senhor, a túnica sem costura, que não foi dividida, mas lançada à sorte (Jo: 23-24). Portanto, em uma e única Igreja há um único corpo e uma única cabeça, não duas cabeças como um monstro, em outras palavras, Cristo e o Vigário de Cristo, Pedro e seus sucessores, pois o Senhor disse diretamente a Pedro: “Apascenta as minhas ovelhas” (21:17), significando minhas ovelhas em geral, não estas, ou aquelas em particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas (a Pedro). Portanto, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro ou a seus sucessores, devem eles confessar que não são ovelhas de Cristo, pois Nosso Senhor disse em João: “só há um rebanho e só um pastor.” Sabemos pelos textos dos Evangelhos de que nesta Igreja e em sua força, encontram-se duas espadas: a saber, a espiritual e a temporal. Pois quando os Apóstolos dizem ‘Veja, aqui há duas espadas” (Lc 22:38), isto é, na Igreja, pois quando os Apóstolos falavam, o Senhor dizia que não havia muitas, mas o suficiente. Certamente, quem nega que a espada temporal se encontra no poder de Pedro, não ouviu bem as palavras do Senhor determinando: “Coloque sua espada na bainha” (Mt 26:52). Ambas, portanto, encontram-se no poder da Igreja, ou seja, a espada espiritual e a material, porém a primeira é para ser administrada para a Igreja, mas a última, pela Igreja; a primeira nas mãos dos sacerdotes, a última, pelas mãos dos reis e soldados, porém conforme a vontade e tolerância dos sacerdotes.
No entanto, uma espada deve se subordinar a outra e a autoridade temporal deve subordinar-se ao poder espiritual. Pois o Apóstolo disse: “Não há autoridade que não venha de Deus; as que existem, foram instituídas por Deus” (Rm 13:1-2), porém elas não serão determinadas se uma espada não se subordinar a outra e se a inferior, por assim dizer, não for elevada pela outra.
Pois, de acordo com o Bem-aventurado Dionísio, é uma lei da Divindade que as coisas mais inferiores subam a lugares mais elevados por meio dos intermediários. Então, conforme a ordem do Universo, todas as coisas não progridem igualmente em ordem e imediatamente, porém a mais inferior pela intermediária e a inferior pela superior. Daí, precisamos reconhecer mais claramente que o poder espiritual ultrapassa em dignidade e nobreza, qualquer poder temporal seja lá qual for, pois o que é espiritual ultrapassa o temporal. Isto vemos muito claramente também pelo pagamento, bênção e consagração dos dízimos, e também pela aceitação do próprio poder em si e pelo governo de coisas. Pois com verdade como testemunhamos, pertence ao poder espiritual estabelecer o poder terrestre e julgar se ele tem sido bom. Assim, cumpre-se a profecia de Jeremias a respeito da Igreja e do poder eclesiástico: “Vede! hoje vos coloquei sobre as nações, e sobre os reinos” e todo o resto. Portanto, se o poder terrestre errar, ele será julgado pelo poder espiritual, mas se um poder espiritual menor errar, será julgado pelo poder espiritual maior, porém se o maior poder espiritual errar, ele somente poderá ser julgado por Deus e não pelo homem, de acordo com o testemunho do apóstolo: “O homem espiritual julga todas as coisas e ele mesmo não é julgado por nenhum homem” (1 Cor 2:15). Esta autoridade, no entanto, (embora tenha sido entregue ao homem e é exercida por homem), não é humana, mas divina, dada a Pedro por uma palavra divina e confirmada a ele (Pedro) e seus sucessores por aquele que a confiou a Pedro, dizendo o Senhor ao próprio Pedro: “Tudo aquilo que ligares na Terra, será ligado também no Céu” etc. (Mt 16:19). Portanto quem resistir a este poder determinado por Deus, resiste à ordenação de Deus (Rm 13:2), a menos que invente como os maniqueístas, dois começos, o que é uma falsidade e que nós julgamos como heresia, pois de acordo com o testemunho de Moisés, não há princípios, mas um único princípio, quando Deus criou o Céu e a Terra (Gen1:1). Além do mais, declaramos, proclamamos, definimos que é absolutamente necessário para a salvação que toda criatura humana se sujeite ao Pontífice Romano.
(Papal Encyclicals Online; Ross & Martin pp. 233-236)
A Unam Sanctam foi publicada em 18 de novembro de 1302 e recebeu resposta quase universal da nobreza europeia rejeitando-a. Philip IV tinha na corte João de Paris (*1255 +1306), renomado e controverso teólogo, filósofo e frade dominicano, que escreveu uma contestação argumentando que a Igreja certamente possui a autoridade espiritual, mas não sobre assuntos materiais e, certamente, não sobre reis que governavam por direito divino e, notoriamente, instalados no poder por Deus e não tinham obrigação nenhuma de se submeterem posteriormente aos caprichos papais.
Philip IV, então, acusou Bonifácio de vários crimes, com os quais ele podia provar e exigia que ele renunciasse ao cargo. Bonifácio respondeu esboçando a excomunhão de Philip IV, porém, antes que ele a fizesse, Philip IV enviou 1.000 cavaleiros para atacarem Bonifácio em seu palácio e arrastá-lo de volta até Lyon, para julgamento em setembro de 1303.
Bonifácio foi capturado, espancado e privado de comida e água por três dias até que foi resgatado por cidadãos locais leais a ele. Mesmo assim, o rude tratamento que se submeteu afetou sua saúde e veio a morrer um mês depois, de “febre”, em outubro de 1303. Bonifácio VIII foi sucedido por Clemente V (pont. 1305-1314), um francês, aliado de Philip IV e que levou a sede do Papado para Avignon, para agradar ao Rei.
A excomunhão de Philip IV foi cancelada e Clemente V, ao contrário, emitiu uma declaração isentando Philip de qualquer culpa no ataque a Bonifácio. A Unam Sanctam foi, então, ignorada pela nobreza europeia que ficou do lado de Philip IV e João de Paris, afirmando que a Igreja não possuía poder sobre os assuntos temporais e que um monarca fosse capaz de governar conforme seu desejo, sem medo de interferência eclesiástica ou represálias por deixar de obedecer a qualquer demanda papal.
Conclusão
Os argumentos da nobreza foram todos sensatos, mas basicamente fúteis porque pretensões lógicas e racionais não tinham o poder contra a evidente verdade de que a Igreja somente podia fechar os portões do céu a uma alma, enviá-la ao purgatório ou condená-la ao inferno. Um rei podia receber excomunhão por alguma transgressão, mas certamente iria se entender com o Papa para ser perdoado e ser visto como um legítimo monarca cristão.
Hierarquicamente o papado lidava com a monarquia e a Igreja comum operava com o povo em geral na Idade Média. A partir do século IX, a Igreja emitiu documentos conhecidos como penitenciais, para servirem como guias para o clero intrometer-se nos assuntos privados dos paroquianos, de modo a fazer cumprir a prática correta da crença religiosa. Prática correta refletia crença correta – definida como a crença ortodoxa católica – e aqueles que dela se desviassem da prática aceitável deviam ser acusados de heresia. Práticas impróprias incluíam empregar adivinhações para saber o futuro, usar encantamentos para afastar a má sorte ou trazer sorte, uso de encantamentos ou talismãs, colher ervas medicinais cantando encantamentos ao invés do Pai Nosso e criticar a política da Igreja, entre muitas outras.
Muito embora a Unam Sanctam não tivesse o efeito esperado por Bonifácio, ela refletiu a visão da Igreja de si própria como o único e legítimo agente da salvação, visão gravada consistentemente sobre a população da Europa junto com a realidade das chamas do inferno a espera dos transgressores. A insistência da Igreja em sua posição inflexível já havia contribuído para o chamado Grande Cisma de 1054 entre a Igreja Católica Romana no ocidente e a Igreja Ortodoxa Oriental, quando a Igreja de Roma medieval alegou ser a única que recebeu autoridade de São Pedro e a Igreja Oriental deveria se submeter à sua autoridade.
Em 1054, a Igreja Ortodoxa Oriental recusou-se a obedecer, da mesma maneira que Philip IV da França em 1302 e, finalmente, pelas mesmas razões, a Reforma Protestante do século XVI. A autoridade espiritual da Igreja ficou, finalmente, comprometida, não pelas refutações críticas, mas por seus graves defeitos internos. Muitas das políticas e práticas da Igreja contradiziam a visão idealizada que tinha de si mesma e de seu papel na salvação das almas daqueles a quem tinha a pretensão de servir e isto contribuiu efetivamente por sua fratura durante a Reforma Protestante.