A ideia que Cleópatra VII (69-30 a.C.), a famosa e última rainha do antigo Egito, devia sua posição de poder à beleza persiste. "O nariz de Cleópatra: se fosse menor, toda a face da terra seria diferente", ruminou o filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) em sua obra Pensées (162). Para o filósofo, este pensamento ilustrava como algo pequeno pode mudar o curso da história, mas esta declaração também se baseia na crença de que Cleópatra devesse a posição de poder naquela importante conjuntura histórica somente à aparência física. Esta ideia perpassa nossa percepção moderna – em estudos acadêmicos sérios, nos quadrinhos de Asterix e no cinema de Hollywood. Os historiadores normalmente não abordam questões de aparência física, exceto para esboçar um retrato de um biografado, mas não para responder questões sobre uma pessoa de importância histórica e poder político. Portanto, Cleópatra era realmente atraente? Por que sua aparência importa?
Regina Meretrix: Cleópatra na Literatura Romana
Para Plínio, o Velho (23-79 d.C.), Cleópatra nada mais era do que uma “rainha prostituta” (regina meretrix, História Natural, 9.58.1), implicando que ela conquistara sua posição de riqueza e poder prostituindo-se com Marco Antônio (83-30 a.C.), e graças a um comportamento devasso. Ideias similares são reproduzidas por Cássio Dio que, escrevendo no século III d.C., alega que, quando Júlio César (100-44 a.C.) encontrou-se pela primeira vez com a rainha, "ela era uma mulher de beleza incomparável e naquela época [48 a.C.], quando se encontrava no auge da juventude, estava ainda mais formidável" (42.34.4); e quando ela ofereceu a Marco Antônio um funeral real em Alexandria, "mesmo em trajes de luto, ela estava maravilhosamente bela" (51.12.1).
O que lemos na literatura romana são as reverberações da campanha de difamação contra Antônio e Cléopatra liderada por Otaviano (63 a.C. - 14 d.C.), mais tarde imperador Augusto (r. 27 a.C. - 14 d.C.). Otaviano tinha todo o interesse em apresentar a iminente guerra civil contra seu colega, Marco Antônio, um respeitado estadista romano, como um conflito contra uma estrangeira, a rainha egípcia. Retratando Cleópatra como uma bela mulher que tinha seduzido sexualmente Antônio e uma bruxa que lançara feitiços contra ele não apenas emasculava o adversário ou diminuía a rainha, nem simplesmente a colocava no papel de uma estrangeira ameaçadora. A propaganda de Otaviano propositalmente recusou-se a reconhecer Cleópatra como a soberana mais rica e poderosa do Mediterrâneo helenístico.
O filósofo moral grego Plutarco (c. 50-120 d.C.), por seu turno, traz um retrato com mais nuances. Ele explica que “aqueles que tinham visto Cleópatra sabiam que nem em sua juventude ou beleza ela era superior a Otávia”, a irmã de Otaviano e relutante esposa de Antônio (Antologia 57.3), “pois de fato sua própria beleza, como diziam, não era em si mesma incomparável em absoluto, ou de tal forma que impressionasse quem a via” (ibid 27.2). Isso não queria dizer que a rainha fosse pouco atraente, mas ela não devia os relacionamentos com Júlio César ou Marco Antônio à beleza juvenil. De fato, Plutarco prossegue que o charme da rainha residia na presença irresistível, no caráter persuasivo e no discurso estimulante, porque se tratava de uma pessoa altamente educada, fluente em vários idiomas.
Mesmo que os historiadores modernos, incluindo Grace Macurdy (1932), Michel Grant (1972) e Stanley Burstein (2004) reconheçam que Cleópatra não era excepcionalmente atraente (seja por padrões antigos ou atuais), eles tendem a insistir que ela era admirada pela beleza e seduzia os homens com sua aparência física. Ainda assim, como Guy Weill Goudchaux (2001) enfatiza corretamente, dizer que a beleza de Cleópatra não era “incomparável em absoluto” não implica que fosse pouco atraente – e muito menos feia. De qualquer forma, deve-se principalmente à insistência de Sarah Pomeroy (1976 e 1984) que os estudiosos viessem a aceitar que Cleópatra forjou sua posição de poder graças à capacidade intelectual, talento estratégico e formidável riqueza.
Regina Regum: Retratos Helenísticos de Cleópatra
Quando se tenta determinar como a rainha deve ter se parecido na realidade, somos confrontados com a falta de semelhança nos retratos antigos. Nenhuma estátua em tamanho natural ou busto sobrevivente podem ser identificados sem controvérsias como representando a rainha. Apenas as moedas ainda existentes, cunhadas por Cleópatra ou em nome da rainha, oferecem uma amostra de como ela desejava ser representada. Nenhuma das cunhagens feitas em Alexandria, porém, são de moedas de ouro ou prata com alto valor.
Após a conquista da Armênia (34 a.C.), Marco Antônio ordenou a cunhagem de denarii de prata gravados com seu próprio retrato e o de Cleópatra de cada face. Sua cabeça hercúlea e muscular dificilmente pode ser descrita como naturalista. A dela, de certa forma, reflete essa sensação, embora menos muscular, mas, ainda assim, pouco naturalista. Suas características incluem um nariz aquilino e queixo pontudo. Ela usa uma faixa real (diadēma) no cabelo ondulado (que é preso num coque), um pingente globular no ouvido, um colar de pérolas e um traje drapeado. Diante de seu busto está uma cornucopia – vaso em forma de chifre que simboliza a abundância e, por extensão, a riqueza do reino ptolemaico. Em torno de sua cabeça, a legenda diz Cleopatrae reginae regum filiurum regum (De Cleópatra, Rainha de Reis e Filhos de Reis) - uma expressão assertiva de sua posição de poder, derivada de sua descendência Lágida [outra denominação da dinastia ptolemaica], bem como das relações sucessivas com Júlio César e Marco Antônio.
Um meio óbolo de prata, cunhado logo antes da Batalha de Ácio (Actium, 31 a.C.), mostra um retrato mais delicado com diadema, incluindo um nariz mais redondo, embora ainda proeminente e, de resto, características faciais bastante genéricas. Um retrato mais naturalista de Cleópatra pode ser visto em suas moedas de bronze bem preservadas (cunhadas em Alexandria e em Nova Pafos, Chipre). Nelas Cleópatra aparece com rosto oval e faces finas, ossos malares destacados e uma testa curta; narina curvada, que cai diretamente sobre o osso do nariz; olhos grandes e amendoados, com pálpebra fortemente gravadas sobre a inferior, mais fina, no canto externo; nariz proeminente, com narinas largas e grandes; um plano nasal labial pequeno; lábios ligeiramente cheios, com os cantos da boca voltados para baixo; queixo redondo e projetado; e um pescoço suave – o cabelo está preso num penteado em forma de melão, preso por uma faixa larga (diadēma) e amarrado num coque redondo.
A única escultura que se compara favoravelmente às representações de Cleópatra nas moedas é uma cabeça de mármore descoberta ao longo da Via Ápia em 1784 e desde então em exibição no Museu do Vaticano. A despeito do nariz perdido, dificilmente pode ser descrita como pouco atraente. Se ela possa ou não ser considerada como uma "beldade" (o que quer que seja que isso signifique), porém, fica a cargo do observador.
Outra escultura que com frequência se atribui a Cleópatra é uma cabeça de mármore igualmente descoberta ao longo da Via Ápia (c. 1786-97) e que atualmente se encontra em exibição no Museu de Antiguidades dos Museus Estatais de Berlim. De acordo com Flemming Johansen (2003), a escultura "sugere grande beleza física", o que em sua mente "contrasta agudamente com os bem pouco lisonjeiros retratos das moedas". O mesmo autor, porém, considera que a cabeça de Berlim "não é de Cleópatra e tampouco antiga". Johansen, entretanto, conta com poucos apoiadores que concordam com sua tese de que se trata de uma falsificação moderna.
A imagem de Cleópatra também aparece em moedas de Patras, um porto onde Antônio passou o inverno antes da Batalha de Ácio (32/1 a.C.). A moeda exibe o busto de Cleópatra no verso, com a coroa de Ísis no reverso. Sua presença numismática atesta o papel central da rainha egípcia neste período.
Basilissa Kleopatra: Cleópatra na História Antiga
Poucos nomes antigos são tão famosos quanto o de Cleópatra – e mesmo poucas mulheres podem se equiparar em fama na história antiga; talvez Nefertiti, a esposa de Akhenaton, e Olímpia, a mãe de Alexandre, o Grande, cheguem perto. Cleópatra VII, ainda assim, foi a última em uma longa linhagem de rainhas poderosas, de Arsínoe II e Berenice II Evérgeta às Cleópatras da segunda metade do período helenístico. Ela nasceu numa conjuntura decisiva da história, quando o poder de Roma expandia-se ainda mais em direção ao Mediterrâneo oriental. Seu pai, Ptolemeu XII, precisou depender da assistência de Pompeu, o Grande, para recuperar o trono (em 55 a.C., após uma ausência de aproximadamente três anos). Entre os componentes das forças romanas que reinstalaram o rei ptolemaico encontrava-se um jovem comandante de cavalaria chamado Marco Antônio.
Após a morte do pai (51 a.C.), Cleópatra ascendeu ao poder e imediatamente envolveu-se num conflito sucessório com seu irmão mais velho, Ptolemeu XIII (61-47 a.C.), que se transformou numa guerra civil. Enquanto ela marchava da Palestina contra o exército real da Dinastia Ptolemaica para recuperar o trono, a Guerra Civil Romana (49-48 a.C.) entre Pompeu e Júlio César literalmente desembarcou na costa egípcia. Em busca de apoio do rei, Pompeu foi prontamente assassinado no Egito por ordens de Ptolemeu XIII. César chegou em Alexandria logo depois para vingar a morte de Pompeu. Ele reinstalou Cleópatra e imediatamente ficou sitiado nos alojamentos palacianos, num conflito militar prolongado conhecido como a Guerra Alexandrina (48-47 a.C.). No final das contas, Ptolemeu XIV (59-44 a.C.) foi instalado ao lado da rainha, que se encontrava no momento grávida do filho de César - o único filho deste, conhecido como Cesarion, mas oficialmente qualificado como Ptolemeu César (47-30 a.C.).
Após o assassinato de Júlio César nos Idos de Março, em Roma (44 a.C.), quando ela, de fato, estava próximo à cidade, Cleópatra retornou a Alexandria, mandou matar seu irmão e instalou Cesarion a seu lado como governante. No conflito que se seguiu entre Antônio e Otaviano (o sobrinho-neto de César, posteriormente o imperador Augusto), ela se aliou ao primeiro. Três crianças resultaram do relacionamento entre ambos, chamadas Alexandre, Cleópatra e Ptolemeu. Casamentos com estrangeiras não eram reconhecidos em Roma; em Alexandria, Antônio nunca foi proclamado rei mas, em 34 a.C., todas as crianças da rainha receberam cerimoniosamente reinos além do Egito. Desta forma, Cleópatra expandiu o Império Ptolemaico muito além da maior esfera de influência que seus predecessores já tinham conquistado. O Egito sempre fora uma das nações mais ricas do mundo antigo; mas agora dispunha de um poderoso império, rivalizado apenas pela cada vez mais agressiva República Romana.
Com a guerra civil aproximando-se, Antônio e Cleópatra reuniram forças e partiram de Alexandria, através do Levante e Ásia Menor, em direção à Grécia. Em Patras, na região de Acaia, cunharam moedas de prata com o retrato dela com diadema, proclamando sua soberania com a legenda "Basilissa Kleopatra" (Rainha Cleópatra), no nominativo, em vez do usual genitivo. Na Batalha de Ácio (31 a.C.), o gênio estratégico do comandante naval de Otaviano, Marco Agripa, rendeu-lhes a vitória. Antônio e Cleópatra, ainda que derrotados, reagruparam-se em Alexandria, mas foram incapazes de impedir sua perdição, à medida que as forças de Otaviano se aproximavam. Antônio cometeu suicídio e, após dar-lhe um funeral real, Cleópatra o seguiu (30 a.C.). Com ela, o período helenístico chegou ao fim.
A questão mais importante não reside na beleza de Cleópatra. Em vez disso, é relevante compreender o significado do seu papel histórico nesta transição decisiva da era Helenística para o Império Romano. Permitindo-se especular sem base factual, historiadores perguntam-se o que poderia ter acontecido caso Antônio e Cleópatra tivessem vencido a Batalha de Ácio, derrotado o exército e frota romanas e eliminado seu adversário, Otaviano. Talvez a crescente inimizade entre Leste e Oeste tivesse se dissipado, pois o Mediterrâneo possivelmente seria governado de Alexandria, em vez de Roma. Imagine por um momento a história ocidental sem o legado romano... Cleópatra foi uma das poucas mulheres na história a governar por seu próprio direito (ainda que sempre com um rei nominal ao seu lado no trono). Foi rainha de um dos países mais ricos do mundo antigo e desta forma a mulher mais poderosa de sua época. Ela ofereceu sua aliança aos dois estadistas mais poderosos de Roma, que precisavam desesperadamente de seu apoio militar e financeiro nas suas próprias guerras civis. Cleópatra foi, em outras palavras, uma das mais assertivas governantes da antiguidade - e a aparência física teve pouco a ver com sua importância histórica.
Uma versão deste artigo foi publicada originalmente em AncientWorldMagazine.com.