As Reformas Marianas foram um conjunto de mudanças feitas no exército romano no final do século II a.C. pelo general e político Caio Mário (157-86 a.C.). Estas reformas transformaram o exército de uma milícia armada numa força militar profissional. O sistema de manípulo das antigas legiões polibianas foi abolido e substituído pela coorte. As qualificações de propriedade para o serviço militar também foram eliminadas. De acordo com o historiador Adrian Goldsworthy em sua obra In the Name of Rome (Em Nome de Roma), ao fim do século I a.C. a política, a sociedade e o exército romanos haviam mudado profundamente. “A carreira de Mário e a desordem da sua época foram sintomas destas mudanças” (128).
As reformas marianas podem ser resumidas nos seguintes itens:
- Inclusão do povo comum, conhecido como capite censi
- Substituição do manípulo pela coorte
- Criação das mulas de Mário
- O estandarte da águia torna-se o símbolo da legião.
A Legião Polibiana
Para compreender o exército mariano, é preciso considerar a estrutura militar do período anterior. As tropas eram selecionadas pelo processo chamado de dilectus ou “uma elaborada cerimônia de sorteio e seleção para a alocação de oficiais e soldados para as quatro legiões consulares alistadas anualmente das tribos” da população romana (Matthew, 1). As antigas legiões romanas reuniam aproximadamente 4.000 soldados de infantaria e 300 de cavalaria. Eram divididos em manípulos, organizados como um tabuleiro de xadrez, com dez manípulos em cada linha horizontal. O termo legião significa “recrutamento” e se referia a todo o povo romano armado, mas por volta do século IV a.C., passou a designar a unidade mais importante do exército. Nesta época, a legião consistia em soldados que possuíam propriedade suficiente para custear seu próprio equipamento. Os mais ricos formavam a cavalaria e eram conhecidos como equites, enquanto os mais pobres constituíam a infantaria ligeira ou velites.
De acordo com Políbio, a legião era dividida em três fileiras conforme a experiência. Na infantaria, a primeira fila de soldados trazia homens jovens, pouco acima dos vinte anos e cidadãos pobres, que possuíam apenas o suficiente para torná-los elegíveis ao serviço militar. Estes eram conhecidos como hastati. A segunda fila consistia de homens na casa dos vinte a trinta anos, chamados de principes. A última fila reunia os veteranos mais velhos, armados com longas lanças. Eram conhecidos como triarii (triários). Cada linha era dividida em dez manípulos, que por sua vez eram divididos em duas centúrias, comandadas por um centurião.
Políbio destaca que o método de combate era diferente dos macedônicos. Cada legionário dispunha de um espaço de noventa centímetros de distância dos companheiros que ficavam à sua frente, atrás e dos lados. Isso dava-lhe espaço para lutar individualmente. O soldado romano defendia o corpo com um escudo longo e usava a espada para golpear e cortar. Isso significa que cada soldado precisava combater dois homens à frente da falange e lutar contra dez pontas de lanças. Nesta formação, as tropas de trás não poderiam apoiar a linha de frente, como a falange. Na batalha, os escaramuçadores começavam, atirando lanças na esperança de romper a formação inimiga. Uma vez que o inimigo avançava, os escaramuçadores recuavam e os hastati se adiantavam para lutar. Os principes avançariam se os hastati começassem a falhar. “Os triarii ajoelhavam-se com sua perna esquerda” (Políbio, 511). Os triarii cobriam seu braço esquerdo com o escudo e apontavam suas lanças obliquamente para frente, como numa paliçada, de acordo com Lívio. Os triarii só avançavam quando tudo o mais falhava e, assim, serviam como último recurso.
Adrian Goldsworthy afirma que somente no método de vencer num combate direto massivo contra um inimigo a legião se diferenciava de uma falange hoplita grega ou uma falange macedônica combinada com sua cavalaria de choque. Os romanos preferiam um embate rápido e decisivo e eram bastante eficientes. Quando Aníbal, o famoso general cartaginês da Segunda Guerra Púnica, enfrentou os romanos, as legiões polibianas a princípio sofreram severos golpes, mas finalmente o derrotaram com a mesma formação, ainda que com moral mais elevada e melhor liderança.
Mário
Plutarco afirma que os pais de Mário eram fazendeiros que cresceram no povoado de Cerretino, nos arredores de Arpino. Deve ser observado que somente cavaleiros poderiam se candidatar para qualquer magistratura importante de Roma e para integrar esta ordem era necessário possuir propriedades consideráveis. Os membros de famílias senatoriais começavam como cavaleiros, até que o sucesso político encorajava os “censores a arrolá-los ao Senado, mas estes formavam uma pequena minoria da Ordem, pois a maioria deles preferia não entrar na política” (In the Name of Rome, 129). A família de Mário fazia parte da aristocracia de Arpino, com considerável influência no povoado. Sua carreira militar começou em 134 a.C., quando serviu como cavaleiro sob Cipião Ameliano, na Espanha. Ele “conquistou um tribunato na década de 120 a.C. e serviu na Ásia Menor” (Matthew, 5). Mário foi eleito pretor em 115 a.C. e, no ano seguinte, recebeu o governo propretoriano da Espanha.
Em 111 a.C., Roma estava em guerra contra Jugurta, o Rei da Numídia (região que abrangia parte das atuais Argélia e Tunísia). Nos dois anos seguintes, o conflito prosseguiu sem conclusão à vista. Quinto Cecílio Metelo foi colocado no comando em 109 a.C., junto com Mário, que se tornou seu comandante de cavalaria. No ano seguinte, Metelo recebeu uma prorrogação no comando. Porém, após batalhas em Mutul, Zama e Vaga, ele falhou em capturar Jugurta e pôr fim à guerra. Com o apoio do comitia ou assembleia popular, Mário substituiu Metelo como comandante da campanha da Numídia. A partir deste período, o general iniciaria o conjunto de reformas que mudaria o exército romano para sempre.
O Exército Pós-Mário
Uma das primeiras mudanças foi a eliminação da conexão entre serviço militar e propriedade. Os capite censi ou “contados por cabeça” eram aqueles despossuídos que não se qualificavam para o serviço militar. Agora, porém, eles podiam se alistar no exército. Conforme declara Plutarco, referindo-se a Mário:
Ele foi eleito de forma triunfante e imediatamente começou a alistar tropas. Contrariando a lei e os costumes, ele alistou homens pobres sem qualificações de propriedade, uma classe de pessoas que costumava não ser aceita pelos comandantes no passado, que davam armas, entre outros privilégios, somente para aqueles nos grupos certos de rendimento - com a justificativa de que a posse de propriedades garantia a lealdade dos homens ao estado. (20-21)
Quando Mário levou um grupo destes voluntários para a Numídia, de um ponto de vista militar, isso lhe permitiu conquistar fortificações e povoados na região e, ao mesmo tempo, perseguir o Rei Jugurta. Este exército de voluntários, ao contrário dos soldados convocados, resultou numa força militar mais efetiva e as riquezas da Numídia se tornaram sua pilhagem.
Sob Mário, a mobilidade de cada soldado melhorou. Os legionários carregavam sua própria bagagem. Com cada soldado transportando seus próprios suprimentos, havia mais agilidade e se reduziu o tamanho das caravanas de bagagem. O exército era capaz de se movimentar mais rapidamente, com maior poder de resposta.
Frontino diz na obra Strategemata:
Com o propósito de limitar o número de animais de carga […] Caio Mário fez com que seus soldados amarrassem seus utensílios e rações em trouxas e as pendurassem numa vara bifurcada, o que tornava o fardo mais fácil e facilitava o descanso, daí surgindo a expressão mulas de Mário.
Plutarco acrescenta:
Após ter iniciado a marcha para a linha de frente, ele deu ao exército um curso intensivo de treinamento durante o trajeto. Havia exercícios de corrida e longas marchas; e cada homem foi compelido a carregar sua própria bagagem e preparar suas próprias refeições. Esta foi a origem da expressão “uma das mulas de Mário”. (25)
Os soldados agora recebiam equipamento, armadura e roupas do estado. Os recrutas podiam se alistar por um período de 16 anos. Todos os legionários tinham o pillum, uma lança criada por Mário. Plutarco declara que, antes da guerra contra os cimbros,
Mário primeiro alterou a construção das lanças (javelins). Antes, a haste era presa na cabeça de ferro com dois pregos de ferro; agora Mário, deixando um destes pregos no lugar, removeu o outro e colocou no lugar um pino fraco de madeira. A ideia era que, com o impacto no escudo inimigo, o pino de madeira quebraria e, em vez da lança ficar firme, a haste ficaria torta e pendente, ainda que firmemente presa à cabeça de ferro (37).
Eles também foram armados com o gladius, uma espada curta e penetrante, em vez de receberem armas específicas conforme a experiência. Isso os fazia iguais no combate. Foram organizados em centúrias, cada uma das quais consistindo em 80 homens. Cada legião também possuía uma única águia como estandarte. Como Plínio, o Velho, registrou na obra Natural History (História Natural):
Originalmente as legiões tinham a águia, lobo, Minotauro, cavalo e urso como seus emblemas, que seguiam adiante das respectivas colunas. Com a mudança, somente águias começaram a ser carregadas nas batalhas, enquanto os outros emblemas eram deixados no acampamento. Em seu segundo consulado, Mário dispensou os demais emblemas e designou a águia como o estandarte especial das legiões. A partir daí observou-se que raramente havia um acampamento de inverno de legionários sem um par de águias na vizinhança. (143)
As reformas também aboliram o manípulo, substituído por uma unidade única e coesa chamada de coorte. Uma coorte consistia em três dos antigos manípulos, um de cada linha que os compunham. Dez homens formavam um contubernium. Dez contubernia constituíam uma centúria e seis centúrias formavam uma coorte. Esta formação oferecia várias vantagens. A unidade trabalhava em conjunto e os homens não mais se dividiam pela experiência.
Múltiplas coortes mostraram-se suficientes para destacamentos caso uma força fosse “requerida por uma operação não suficientemente ampla para exigir o uso de uma legião inteira” (The Complete Roman Army, 46-47). Isso era mais simples para um comandante, pois ele chefiaria dez coortes em vez de 30 manípulos. Enviaria mensagens para dez comandantes em vez de 30 subordinados. Em geral, a legião de grande porte, com dez coortes, era usada para operações militares em larga escala; os romanos também enviavam forças menores para lidar com batalhas em pequena escala.
Além disso, as coortes se movimentariam como unidades individuais, sem permissão de movimento com o restante da linha. Isso as fazia mais flexíveis em termos estratégicos e táticos do que as legiões manipulares. E os soldados ficaram mais especializados em sítios do que as antigas legiões. Durante a época de Júlio César (v. 100-44 a.C.), as tropas construíam pontes para cruzar o Reno, reparavam e construíam navios, erguiam torres de cerco, rampas e fortificações de bloqueio, como o general demonstrou na Batalha de Alésia, em 52 a.C.. As reformas marianas resultaram na importante transição de uma milícia semiprofissional para um exército efetivo.
As Mulas de Mário
Em termos logísticos, a maior transformação do exército romano foi o tamanho da caravana de bagagem que acompanhava a legião em campanha e a quantidade de equipamento que um legionário passou a transportar. As tropas carregavam “um conjunto de equipamentos, incluindo rações, material para trincheiras e para cozinhar, numa vara bifurcada colocada sobre seus ombros, além de portar armas e armadura” (Matthew, 39). Todas as legiões compartilhavam a provação comum de carregar o mesmo equipamento. Como Christopher Matthew declara em sua tese sobre as reformas marianas, “o transporte dos próprios equipamentos tanto aumentava o nível de aptidão física dos legionários quanto criava uma legião mais rápida e com maior mobilidade, ao remover sua dependência das inconvenientes caravanas de bagagem” (Matthew, 90). Esta prática prosseguiu até o início do Império Romano.
Consequências Militares
Quando Mário incluiu as massas mais pobres e numerosas no exército romano, é improvável que tenha sido motivado por um desejo de subverter o método de recrutamento tradicional; ele o fez por necessidade premente de efetivos adicionais. A mudança permitiu a Roma utilizar grandes reservas de pessoal, bem maiores se comparadas com o período em que as qualificações de propriedade ainda estavam em vigor. Embora o recrutamento das classes mais baixas fosse inicialmente uma medida de emergência, trouxe muitas vantagens. Quando se provou bem-sucedida, ficou difícil retornar aos requisitos anteriores.
Há muita discussão sobre o que isso significou para os próprios soldados. Uma questão que surgiu da reforma foi se ela fez o soldado mais leal ao seu oficial comandante. Um soldado recrutado tinha pouca escolha se fosse chamado para lutar por seu país, mas seus maiores desejos eram a pilhagem, despojos e sobrevivência. Os soldados que combatiam no além-mar o faziam na esperança de obter uma recompensa palpável pelo esforço. Mário também transformou o exército romano de uma milícia de cidadãos para uma força mais capaz e efetiva. Os comandantes passavam mais tempo com seus soldados, assim formando laços mais estreitos.
Está claro que para muitos dos pobres sem-terra uma carreira no exército era uma proposta atrativa, mas somente se resultasse em alguma recompensa, o que significava posse da terra. De vários modos, isso tem sido a base do soldado cidadão amador. (Sampson, 184-185)
Consequências Políticas e Legado
Após a Guerra contra Jugurta, Mário organizou colônias no Norte da África e repetiu a medida ao fim das guerras setentrionais contra tribos germânicas invasoras. De um ponto de vista estratégico, a política romana de controlar a Itália estava sendo exportada para o exterior. Porém, povoações coloniais já haviam sido organizadas pelo Senado, em conjunto com as assembleias e tribunos. Durante o sexto consulado de Mário, as colônias africanas foram aprovadas sem incidentes. A fundação das colônias para veteranos foi considerada saudável por razões sociais e estratégicas e não levou a um confronto com os senadores. Uma razão social crucial foi o alívio da tensão entre os cidadãos despossuídos de Roma.
Mário tinha criado um exército profissional para o estado romano. A despeito da parcimônia de fontes sobre o tema, as reformas marianas trouxeram uma drástica elevação no efetivo militar de Roma, ao abolir a qualificação de propriedade para o serviço militar. O general levou seus homens a trabalhar em conjunto, independente do seu nível de experiência. Eles receberam equipamentos novos e melhores, que aumentaram sua mobilidade e reduziram o fardo das caravanas de bagagem. Os exércitos romanos não eram mais uma milícia armada e sim uma força militar profissional.