O Comércio no Oceano Índico antes da Conquista Europeia

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Artigo

James Hancock
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 20 julho 2021
Disponível noutras línguas: Inglês, francês, espanhol
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Descobrir uma rota marítima para o Oriente e conseguir acesso ao lucrativo comércio de especiarias estava na raiz da Era das Grandes Navegações na Europa. Porém, quando Vasco da Gama contornou o Cabo da Boa Esperança e alcançou o Oceano Índico, em 1493, ele encontrou em pleno funcionamento uma vibrante rede de comércio internacional, cuja extensão e riqueza estava muito além da imaginação dos europeus.

Ancient Harbour Market
Mercado Costeiro da Antiguidade
Mohawk Games (Copyright)

Três poderosos impérios muçulmanos cercavam o Oceano Índico. A oeste, o Império Otomano ocupava o território outrora pertencente ao Império Bizantino e controlava a rota comercial do Mar Vermelho, que ligava o Sudeste Asiático a Veneza. Ao centro, a Dinastia Safávida controlava a rota do Golfo Pérsico. A leste encontrava-se o Império Mogol, cobrindo a maior parte da Índia, mas ainda enfrentando poderosos governos hindus, incluindo o Reino de Kozhikode (Calicute) e o Império Vijayanagara, no sul da Índia. O Sri Lanka (antigo Ceilão) era governado por budistas.

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Havia dois grandes portais muçulmanos para o Oceano Índico. O portal otomano passava por Áden, na entrada do Mar Vermelho. A história de Áden como um elo fundamental entre o Mar Vermelho e o Oceano Índico remonta à Antiguidade e aos egípcios, gregos e romanos. A cidade se transformou num enclave árabe muçulmano bem fortificado, que recebia os produtos comerciais do Oceano Índico para envio ao Egito. O portal safávida para o comércio do Oceano Índico localizava-se em Ormuz, entre o Golfo Pérsico e o Golfo de Omã, e há muito servia como elo vital entre o mundo persa e o Oceano Índico.

A Índia ao Centro

Calicute abrigava o centro comercial mais importante da Índia, além de ser o maior fornecedor de pimenta do mundo.

A Índia esteve no centro do comércio do Oceano Índico durante séculos. Entre as cidades mercantis mais importantes podem ser citadas Calicute (Kozhikode), controlada pelos hindus; Cananor, Cochim, Quilon e a Goa muçulmana, ao longo da costa sudoeste de Malabar; e Cambaia, no Gujarat, controlada pelos muçulmanos, na extremidade noroeste da península. No final do século XV, os navegadores de Gujarat rivalizavam com os árabes como os principais comerciantes do Índico.

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Sem dúvida, Calicute abrigava o centro comercial mais importante da Índia, além de ser maior fornecedor de pimenta do mundo. Durante séculos, foi o principal destino dos mercadores do Oceano Índico provenientes de Áden, Ormuz, Malaca e China. Também ficou conhecida pelo que os comerciantes europeus chamavam de tecido calico [morim ou chita], do qual derivou seu nome em inglês.

Cambaia, em Gujarat, abrigava aqueles que vieram a ser conhecidos como os navegadores mais experientes do mundo. Como observou Tomé Pires, cronista do século XVI:

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Não há dúvida de que essas pessoas são a fina flor da profissão. Eles conhecem suas mercadorias; encontram-se tão completamente absorvidos pelo seu som e harmonia que os gujarates dizem que qualquer infração relacionada a elas é perdoável. Há gujarates instalados em todos os lugares. Eles trabalham uns para uns e outros para outros. São diligentes e rápidos no comércio. Fazem sua contabilidade com números como os nossos e com nossa própria escrita. Eles são homens que não dão nada que lhes pertença, nem querem nada que pertença a outrem; portanto, eles tinham a mais alta estima em Cambaia até o presente [...]

Cambaia estende-se principalmente em dois braços: com o direito alcança Áden e, com o outro, chega a Malaca, os mais importantes destinos para se navegar [...] Eles enviam muitos navios para todas as partes, para Áden, Ormuz, o reino do Decão, Goa, por todo Malabar, Ceilão, Bengala, Pegu, Sião, Pedir, Pase (Paefe) e Malaca, levando grande quantidade de mercadorias e trazendo outros tipos de volta, desta forma tornando Cambaia rica e importante. (Cortesão, 42)

No século XV, os principais portos da vasta rede comercial do Oceano Índico estavam sob controle majoritariamente muçulmano. Os comerciantes muçulmanos se espalharam muito além da Arábia, estabelecendo-se em comunidades mercantis na África, Índia, Sri Lanka, Indonésia e Sudeste Asiático. À medida que as comunidades muçulmanas se fortaleciam, tornaram-se impérios comerciais liderados por sultões poderosos. Estes incluíam Malaca, na Península da Malásia, as ilhas de Ternate e Tidore, nas Molucas, e uma série de ricas cidades-estados situadas ao longo da costa da África Oriental.

A Costa Suaíli da África

Estas ricas cidades-estados controladas por muçulmanos estendiam-se de Sofala (no atual Moçambique), ao sul, a Mogadíscio (na Somália moderna), ao norte. No intervalo situavam-se Mombaça, Gedi, Pate, Lamu, Malindi, Zanzibar e Kilwa. A estrutura social das cidades-estados suaíli consistia num complexo de sangue nativo africano e misto árabe-africano. De acordo com o historiador H. Neville Chittick:

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Os habitantes dos povoados podiam ser considerados como pertencendo a três grupos. A classe dominante tinha geralmente um misto de ascendência árabe a africana [...] eram provavelmente os proprietários de terras, comerciantes, a maioria dos funcionários religiosos e os artesãos. Numa escala inferior, em termos de status, estavam os africanos de sangue puro, geralmente capturados em incursões no continente e em estado de escravidão, que cultivavam os campos e, sem dúvida, realizavam outras tarefas servis. Distintos de ambas as classes, os árabes de passagem ou recém-assentados e talvez os persas, ainda se encontravam pouco assimilados à sociedade. (Fage, 209)

Os mais poderosos estados africanos na costa oriental eram Mombasa e Kilwa, seguidos por Malindi. Eles faziam negócios com o marfim proveniente do sul, ouro e escravos do interior ocidental e olíbano e mirra da África setentrional. Kilwa e Mogadíscio também produziam seus próprios tecidos para venda e extraíam cobre das minas próximas. Todos fabricavam cerâmica e objetos de ferro, tanto para uso local quanto para exportação. Os mercadores internacionais vendiam a eles principalmente algodão, seda e porcelana.

Swahili Coast Map
Mapa da Costa Suaíli
Walrasiad (CC BY)

Málaca

No início do século XVI, a cidade de Málaca (Melaka), na Península da Malásia, também havia se tornado um centro de comércio mundial. Estava localizada na extremidade mais estreita do Estreito de Málaca, com acesso em todas as estações do ano. Ali funcionava a maior câmara de compensação para todas as especiarias produzidas na Indonésia. Também abrigava o ponto de contato mais comum entre o Ocidente e Oriente, ligando as maiores comunidades mercantis do Oceano Índico. Ali se encontrava a principal conexão comercial entre o Índico e o Mar do Sul da China e quase todo o comércio leste-oeste passava através de seu estreito, o que levou à criação de ricos reinos mercantis ao longo da costa. Como revela Tomé Pires:

Málaca é uma cidade construída para o comércio, maior do que qualquer outra do mundo, no final das monções e início de outras. É cercada e fica no meio, e recebe os negócios e o comércio de um grande espectro de nações, mil ligas de cada lado. (Cortesão, 45)

Map of the Strait of Malacca
Mapa do Estreito de Málaca
US Department of Defense (Public Domain)

Os navegadores de todos os mares da costa indiana e chinesa convergiam para Málaca para fazer negócios com pimenta, cravo-da-índia, noz moscada e macis, tornando a cidade um grande centro urbano com muitas comunidades residenciais de estrangeiros, entre os quais indianos, chineses e javaneses. Entre eles, os mais numerosos eram os gujarates de Cambaia. Como Tomé Pires acrescenta em seu relato:

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Havia mil mercadores gujarates em Málaca, além de quatro ou cinco mil marinheiros, que iam e vinham. Málaca não poderia viver sem Cambaia, nem Cambaia sem Málaca, se quisessem ser muito ricas e poderosas. Todos os tecidos e artigos de Gujarat têm valor comercial em Málaca e nos reinos que fazem negócios com a cidade; pois os produtos de Málaca são apreciados não só neste [local do] mundo, mas em outros, onde sem dúvida são desejados [...] Se Cambaia não tivesse mais acesso ao comércio com Málaca, não poderia sobreviver, pois não haveria saída para suas mercadorias. (Cortesão, 45)

Sri Lanka

Uma parada importante para os comerciantes no caminho de ida e volta para Malaca era o Sri Lanka budista (antigo Ceilão), onde a melhor canela do mundo poderia ser obtida junto com pedras preciosas, pérolas, marfim, elefantes, cascas de tartaruga e tecidos. Navios de todo o mundo vinham ao Sri Lanka em busca de seus produtos nativos e mercadorias trazidas de outros países para reexportação. Os ilhéus também enviavam seus próprios navios para portos estrangeiros. Entre os itens importados mais importantes estavam cavalos da Índia e da Pérsia, e da China vinham moedas de ouro, prata e cobre, seda e cerâmica.

O Sri Lanka ocupava uma posição estratégica fundamental no Oceano Índico entre o Oriente e o Ocidente.

O Sri Lanka ocupava uma posição estratégica fundamental no Oceano Índico entre o Oriente e o Ocidente, graças à localização vizinha à Índia e ao longo das rotas marítimas que ligavam os mundos do Mediterrâneo e do Oriente Médio ao Leste Asiático. Havia inúmeras baías e ancoradouros espalhados ao longo da costa do Sri Lanka, o que proporcionava portos abrigados e instalações para embarcações. No final do século XV, a cidade portuária mais importante era Colombo, repleta de muçulmanos instalados no país para desenvolver atividades comerciais. Três reinos amargamente hostis entre si governavam o Sri Lanka, todos sob a proteção da China, através do sistema de tributos.

Ilhas das Especiarias

No extremo leste da rede comercial do Oceano Índico, no arquipélago das Índias Orientais, estavam as Molucas ou Ilhas das Especiarias, de onde vinham cravo-da-índia, noz-moscada e macis. Bem distantes das principais rotas que abasteciam a China, a Índia, a Pérsia, a Arábia e a África, essas pequenas ilhas eram o único lugar na Terra onde tais mercadorias podiam ser obtidas.

A primeira menção das Ilhas Banda encontra-se em registros chineses que datam de 200 a.C. Banda, jamais colonizada por comerciantes muçulmanos, tinha seu comércio sob o controle de um pequeno grupo que os indonésios chamavam de orang kaya ou "homens ricos". Antes da chegada dos europeus, os bandaneses exerciam um papel ativo e independente no comércio. Eles transportavam o cravo-da-índia em canoas a remo para a Malásia e as maiores ilhas da Indonésia para o comércio com os navegadores chineses e indianos.

Os comerciantes muçulmanos chegaram a Ternate e Tidore no início dos anos 1500 e, no final do século, surgiram sultanatos rivais nas duas ilhas, que lutavam contra os chineses e indonésios pela supremacia no comércio de noz-moscada. A feroz rivalidade entre eles levou ao desperdício de grande parte da grande riqueza acumulada no comércio de cravo-da-índia, graças às guerras constantes. Quando os comerciantes europeus chegaram às ilhas, no século XVI, conseguiram acirrar a disputa de Ternate contra Tidore para obter vantagens comerciais.

O Comércio de Especiarias e a Era das Grandes Navegações

Para a maioria dos europeus medievais, as especiarias vinham de algum tipo de paraíso distante, provavelmente o Jardim do Éden. Acreditava-se que as especiarias existiam ali em grande abundância e seriam fáceis de obter, desde que descobrissem sua origem. Esta crença alimentou a Era das Grandes Navegações na Europa e levou exploradores como Cristóvão Colombo (1451-1506) e Vasco da Gama (c. 1469-1524) a embarcar em suas grandes jornadas.

Quando da Gama contornou o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, ele se deparou com uma vasta rede comercial em pleno funcionamento. As potências europeias não faziam ideia do alcance, sofisticação e riqueza da rede comercial do Oceano Índico. Porém, eles dispunham de canhões retumbantes, que usaram liberalmente para assumir o controle. Após a fundação da Cochim portuguesa, em 1503, seguiu-se a Goa portuguesa, que se tornou a capital do Estado da Índia, a porção oriental do Império Português, que no seu auge estendia-se da África ao Japão.

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Bibliografia

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Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

James Hancock
James F. Hancock é um escritor freelancer e professor emérito da Michigan State University. Possui especial interesse na pesquisa da evolução da cultura agrícola e história do comércio. Seus livros incluem "Spices, Scents and Silk" (CABI) e "Plantation Crops" (Routledge).

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Estilo APA

Hancock, J. (2021, julho 20). O Comércio no Oceano Índico antes da Conquista Europeia [Indian Ocean Trade before the European Conquest]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Recuperado de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1800/o-comercio-no-oceano-indico-antes-da-conquista-eur/

Estilo Chicago

Hancock, James. "O Comércio no Oceano Índico antes da Conquista Europeia." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação julho 20, 2021. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1800/o-comercio-no-oceano-indico-antes-da-conquista-eur/.

Estilo MLA

Hancock, James. "O Comércio no Oceano Índico antes da Conquista Europeia." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 20 jul 2021. Web. 21 dez 2024.