A História do Cravinho, da Noz-moscada e do Macis

Artigo

James Hancock
por , traduzido por Filipa Oliveira
publicado em 13 outubro 2021
Disponível noutras línguas: Inglês, francês, indonésio, espanhol
Ouve este artigo
X
Imprimir artigo

As especiarias Cravinho (Cravo-da-Índia), Noz-moscada e Macis provinham de apenas um punhado de ilhotas do arquipélago indonésio, contudo influenciaram bastante o comércio internacional. Na antiguidade, eram conhecidas como medicamentos na Índia e na China e durante a Idade Média foram um importante condimento na culinária europeia, cujos países lutaram acirradamente para controlar o seu comércio.

Mace Surrounding Nutmeg Seed
Macis envolvendo a Noz-moscada
AntanO (CC BY-SA)

História Natural

O nome Cravinho (Cravo-da-Índia), refere-se aos botões secos e fechados da árvore perene, Syzygium caryophyllata, da família da murta, sendo nativo de apenas cinco ilhotas vulcânicas no arquipélago das Índias Orientais: Ternate, Matir, Tidore, Makian e Bachão, todas pertencentes à província das Ilhas Molucas ou As Molucas.

Remover publicidades
Publicidade

A noz-moscada são as sementes castanho-encarnadas escuras dos frutos da Moscadeira (Myristica fragrans), da família Myristicaceae, envolvidas por uma membrana carnosa semelhante a uma rede encarnada escura, ou arilo, o macis, e nativa dos vales protegidos das quentes e tropicais Ilhas Banda, província das Molucas, na Indonésia.

O Cravinho na antiguidade

A primeira menção ao cravinho surge na literatura chinesa da Dinastia Han, por volta do século III a.C.. O tempero chamado hi-sho-hiang ("língua de pássaro") foi usado pela primeira vez como um purificador de hálito, na altura os oficiais da corte eram obrigados a colocar cravinho na boca antes das audiências com o soberano. O cravinho usava-se mais para fins medicinias do que na preparação de alimentos, uma vez que era considerado uma erva de aquecimento interno, que ajudava a dissipar o frio e aquecer o corpo, na forma de tónicos e estimulantes prescritos como auxiliar digestivo e antisséptico. O cravinho era usado para tratar uma panóplia de doenças, incluindo problemas intestinais, impotência, diarréia, vómito e cólera; igualmente eram aplicados em cataplasma para tratar mamilos rachados, picadas de escorpião, dores de dente e praticamente qualquer abscesso que causasse dor.

Remover publicidades
Publicidade
O CRAVinhO TORNOU-se POPULAR Na medicina tradicional AYURVÉDICa E USADO PARA TRATAR UMA panóplia de PROBLEMAS.

Mesmo tendo chegado à Índia vários séculos após ter chegado à China, o cravinho desempenhou igualmente um papel importante na antiga sociedade indiana sendo popular na medicina tradicional ayurvédica e usado para tratar uma panóplia de problemas, incluindo constipações, asma, indigestão, vómitos, dores de dente, laringite, pressão arterial baixa e impotência. No antigo texto sânscrito, Charaka Saṃhitai (século I), afirma-se que "aquele que deseja hálito limpo, fresco e perfumado deve manter noz-moscada e cravinho na boca" (Dalby, 50).

O escritor romano Plínio, o Velho (23-79 d.C.) foi o primeiro a descrever o cravinho no Ocidente na História Natural (70 d.C.), onde registrou que "há também na Índia um grão semelhante ao da pimenta mas maior e mais frágil, chamado caryophyllom, que é relatado por crescer na árvore indiana de lótus; é importado em Roma pelo aroma". O Imperador romano Constantino, o Grande (r. 306-337 d.C.) presenteou o Bispo de Roma, São Silvestre (314-335 d.C.) com ouro e prata, ânforas repletas de incenso e especiarias, incluindo 68 kg. (150 lb) de cravinho. O médico grego Paulo de Égina escreveu no século V: "É da natureza de uma flor de alguma árvore, lenhosa, preta, quase tão grossa quanto um dedo; reputada aromática, azeda, amarga, quente e seca no terceiro grau; excelente em condimentos e outras prescrições" (Dalby, 50). No século VI, o eminente médico bizantino Alexandre de Tralles recomendou o cravinho contra o enjoo, a gota e como estimulante do apetite na obra Doze Livros de Medicina.

Remover publicidades
Publicidade

A Noz-moscada e o Macis na Antiguidade

A noz-moscada e o macis são frequentemente mencionados nas escrituras mais antigas do hinduísmo na Índia, os Vedas, escrito entre 1500 a.C. e 1000 a.C.. A noz-moscada era recomendada para melhorar a digestão e prescrita para dores de cabeça, problemas neurais, febres causadas por constipações, mau hálito e problemas digestivos. Textos indianos posteriores descreveram a noz-moscada como um medicamento importante para problemas cardíacos, tuberculose, asma, dores de dente, disenteria, flatulência e reumatismo.

Whole and Ground Nutmeg
Noz-moscada Inteira e em Pó
Herusutimbul (CC BY-SA)

A noz-moscada e o macis chegaram à China muito mais tarde do que à Índia; a primeira referência do que poderia ter sido a noz-moscada aparece após o século III em Nanfang Caomu Zhuang (Record of Southern Plants and Trees) de Ji Han. Nele menciona uma especiaria perfumada que vem de uma árvore cujas flores são coloridas como um lótus. A Noz-moscada não é commumente mencionada na literatura chinesa até ao século VIII, quando é usado para tratar diarréia, disenteria, dor e inchaço abdominal, redução do apetite e indigestão.

A noz-moscada e o macis eram completamente desconhecidas no Ocidente até ao século V ou VI. Plínio, o Velho, foi o primeiro a escrever sobre uma árvore que chamou de comacum, que tinha uma noz perfumada, mas não se sabe ao certo se se referia à noz-moscada. O médico grego do século I, Dioscórides, também refere vagamente uma casca encarnada de origem desconhecida chamada macir. As primeiras referências claras à noz-moscada e ao macis são encontradas nos textos médicos bizantinos do século VI, que referem uma casca encarnada, macis (macis) e uma noz almiscarada, nux muscata (noz-moscada).

Remover publicidades
Publicidade

Noz-moscada, Macis e Cravinho na Medicina e Culinária Árabe

O estudo da medicina era um dos principais propósitos dos estudiosos islâmicos, de tal forma, que durante os séculos IX e X, no Califado Abássida (750-1258), o quinto califa Harun al-Rashid (r. 786-809) e o filho reuniram obras de medicina grega e outros textos científicos de todo o mundo civilizado e levaram-nos para a Grande Biblioteca de Bagdade, a "Casa da Sabedoria", onde foram traduzidos para o árabe todos os textos médicos gregos, incluindo as obras de Galeno, Oribásio, Paulo de Égina, Hipócrates, e Dioscórides. Com base nos estudos, os médicos muçulmanos acreditavam que a doença era resultado de desequilíbrios corporais, cujo cura seria um equilíbrio certo na ingestão de ervas e especiarias, incluindo a noz-moscada e o cravinho. Estas especiarias desempenharam um papel proeminente nos textos médicos do século IX escritos pelo famoso médico árabe Isaac ibn Amran, cujas obras, escritas em árabe e traduzidas para o hebraico, latim e espanhol, tornaram-se a base do currículo médico da medicina medieval na Europa.

Physician Preparing an Elixir from De Materia Medica
Médico Preparando um Elixir do De Materia Medica
Marie-Lan Nguyen (Public Domain)

Os árabes foram os primeiros a usar o cravinho e a noz-moscada comummente na preparação de alimentos. Na verdade, as especiarias eram muito apreciadas em todo o Médio Oriente tanto pela sua fragrância e propriedades medicinais, como para realçar o sabor dos alimentos. No século V, Heródoto, o antigo escritor, geógrafo e historiador grego escreveu sobre as especiarias da Arábia: "todo o país é perfumado com elas e exala um odor maravilhosamente doce" (As Histórias, Livro III). No século X, o iraquiano Ibn Sayyar al-Warrag refere repetidamente o cravinho em seu Kitab al-Tabikh (The Book of Cookery), tido como o livro de receitas árabe mais antigo. No seu altamente considerado Al-Qanun fi al-Tibb (O Cânone da Medicina, 1025), Ibn Sina recomendou "três oitavos de um gole de noz-moscada com uma pequena quantidade de suco de marmelo" para "fraqueza do estômago" e descreveu a noz-moscada como uma potente mistura anestésica. No século XIII, o cravinho e a noz-moscada desempenharam um papel dominante no popular livro de receitas sírio, Kitab al-Wuslah ila l-Habib, e no livro de receitas de autor anónimo da região de Andaluzia.

Noz-moscada, Macis e Cravinho na Culinária Europeia

os conhecimentos MÉDICOs ISLâMICOs introduziram vários e NOVOS AVANÇOS nA MEDICINA EUROPEIA, INCLUINDO a generalização do TRATAMENTO DE DOENÇAS usando ESPECIARIAS.

Antes do século XII, a prática médica na Europa estava muito atrás dos muçulmanos, dada a pouca pesquisa e porque a igreja medieval considerava a doença como um castigo de Deus, em que os médicos pouco podiam fazer pelos pacientes. Somente após novas traduções, observações e métodos do mundo islâmico é que a medicina ocidental começou a avançar. Os conhecimentos e os métodos dos médicos islâmicos introduziram vários e novos avanços na medicina européia, incluindo o tratamento generalizado de doenças com especiarias.

Remover publicidades
Publicidade

É incerto quando a noz-moscada e o cravinho passaram do armário de remédios para a culinária europeia, embora as suas supostas propriedades "quentes" e "húmidas" tenham sido recomendadas durante séculos nas refeições de inverno, de acordo com os antigos ensinamentos de Galeno. Em 716 a.C., o rei franco Chilperic II ficou conhecido por ter concedido aos monges do mosteiro Corbie a isenção da cota anual de especiarias de 13,6 kg (30 lb) de pimenta, 2.268 kg (5 lb) de canela e 0.907 kg (2 lb) de cravinho. Existem registros, do século IX, do mosteiro medieval de St. Gall, na Suíça, que os monges usavam cravinho para temperar peixe em jejum. No século X, o viajante andaluz Ibrahim ibn Ya'qub observou que os burgueses de Mainz (Alemanha) usavam cravinho para temperar a comida. Quando o rei e a rainha da Escócia celebraram a Festa da Assunção em 1256, a comida foi temperada com 22,7 kg (50 lb) cada de gengibre, pimenta e canela, 1,81Kg (4 lb) de cravinho e 0,90 (2 lb) cada de noz-moscada e macis. Em 1476, no casamento do duque da Baviera-Landshut foram usados nos banquetes 93kg (205 lb) de canela, 129,72 (286 lb) de gengibre e 38,55 (85 lb) de noz-moscada.

Medieval Spice Merchant
Comerciante Medieval de Especiarias
Lawrence OP (CC BY-NC-ND)

Dada a longura da rota do abastecimento das especiarias, estas eram muito caras no início e na Alta Idade Média, o que as restringia aos ricos e aumentava muito sua atratividade. No entanto, à medida que os séculos XI e XII avançavam, houve um aumento constante na popularidade das especiarias asiáticas, estimuladas pelas cruzadas e os que voltaram encantados com a rica gastronomia de Constantinopla. Os venezianos viram uma janela de oportunidade e começaram a abastecer o mercado europeu com quantidades muito maiores de especiarias. Como comenta Turner:

[No final do século XII] os cozinheiros medievais inventaram centenas de usos diferentes, deixando praticamente nenhum tipo de comida sem tempero. Havia molhos ricos e condimentados para carne e peixe, baseados num número quase ilimitado de combinações de cravinho, noz-moscada, canela, macis, pimenta e outras especiarias, moídas e misturadas com uma série de ervas e aromáticos cultivados localmente. (p. 105)

A popularidade das especiarias na culinária e na medicina atingiu o pico histórico durante o final da Idade Média na Europa. As refeições nos lares medievais eram altamente processadas e ricamente temperadas. Raramente se consumiam alimentos crus, mesmo os vegetais e as frutas, e as especiarias eram usadas para temperar todos os tipos de alimentos incluindo: carne, peixe, sopas, doces e vinho. Era uso comum nos banquetes medievais distribuir uma travessa de especiarias da qual os convidados podiam escolher temperos extras para suas refeições já ricamente temperadas. O notável especialista em gastronomia medieval, Paul Freedman, diz que "as especiarias eram onipresentes na gastronomia medieval" e "algo da ordem de 75% das receitas medievais envolve especiarias" (p. 50).

O Comércio Inicial de Noz-moscada, Macis e Cravinho

Muito antes da noz-moscada, do macis e do cravinho serem imprescindíveis aos paladares e remédios do mundo exterior, os mesmos eram fulcrais no comércio entre as ilhas das Especiarias e as ilhas externas de Halmahera, Seram, Kei e Aru, devido à palmeira Saguzeiro (Metroxylon sagu), a principal fonte de alimento das pequenas e vulcânicas Ilhas Molucas e Banda, onde pouco mais crescia além de coqueiros e especiarias. Os bandaneses eram os líderes indiscutíveis do comércio interilhas de sagu por especiarias, viajando em frotas de canoas kora-kora, impulsionadas por remadores em plataformas de bambu amarradas a um metro e meio de cada lado da canoa.

Maluku Islands in Indonesia
As Ilhas Molucas na Indonésia
Lencer (CC BY-SA)

A palmeira Saguzeiro era a base alimentar de centenas de milhares de pessoas, sem despertar grande atenção do mundo exterior até 1869, quando o grande naturalista vitoriano e contemporâneo de Charles Darwin, Alfred Russel Wallace (1823-1913), descreveu detalhadamente as suas características e sabor no seu épico The Malay Archipelago:

Os bolos quentes ficam muito bons com manteiga, e quando feitos com um pouco de açúcar e coco ralado ficam uma delícia. São macios, algo como bolos de farinha de milho, mas têm um leve sabor característico que se perde no sagu refinado que usamos neste país…. Substituem o pão quando bebo café. (van Wyhe, 514)

Mesmo com este intenso comércio interno de especiarias por sagu, a origem da noz-moscada e do cravinho permaneceu um mistério para o mundo exterior por quase um milênio. Até os árabes e os indianos que navegaram por todo o Oceano Índico não tinham a menor ideia de sua origem. No ano 1000, o escritor árabe Ibrahim Ibn Wasif-Shah, na obra Summary of Marvels , fez esta descrição fantasiosa sobre o cravinho e a sua origem:

… em algum lugar perto da Índia está a ilha que contém o Vale dos Cravinhos. Nenhum comerciante ou marinheiro jamais esteve no vale ou jamais viu o tipo de árvore que produz cravinho: os seus frutos, dizem, são vendidos por génios. Os marinheiros chegam à ilha, colocam suas mercadorias na praia e voltam para o navio. Na manhã seguinte, encontram, ao lado de cada item, uma quantidade de cravinhos.

Um homem afirmou ter começado a explorar a ilha. Viu pessoas de cor amarela, sem barba, vestidas como mulheres, com cabelos compridos, mas esconderam-se quando se aproximou. Depois de esperar um pouco, os mercadores voltaram à praia onde haviam deixado as mercadorias, mas desta vez não encontraram cravinhos e perceberam que tal tinha sido por causa do homem que havia visto os ilhéus. Após alguns anos de ausência, os comerciantes tentaram novamente e conseguiram voltar ao sistema inícial de comércio.

Diz-se que os cravinhos são agradáveis ​​ao paladar quando estão frescos. Os ilhéus alimentam-se deles e nunca adoecem ou envelhecem. Diz-se também que se vestem com as folhas de uma árvore que cresce apenas naquela ilha e é desconhecida de outras pessoas.

(Dalby, 50-51)

A entrada da noz-moscada e do cravo-da-índia no comércio mundial dependeu durante muito tempo dos marinheiros malaios e indonésios, sendo os javaneses os protagonistas. No início do século I, três esferas comerciais separadas operavam no Oceano Índico e no Mar da China Meridional:

  • Marinheiros da Índia e do Sri Lanka viajavam de e para Bali, Java e Sumatra através da Baía de Bengala.
  • Os marinheiros indonésios conduziam o comércio dentro do próprio centro do vasto arquipélago.
  • Os indonésios alcançaram o Sudeste Asiático e a China.

Criaram-se em Java e em Sumatra empórios comerciais onde os marinheiros indianos e, posteriormente, árabes podiam aceder às especiarias e mercadorias do Sudeste Asiático e distribuí-las pelo Oceano Índico. Os navios indianos e árabes normalmente navegavam apenas até o Estreito de Malaca, e os navios indonésios faziam as outras duas viagens para o leste da Indonésia e da China. Somente após a Alta Idade Média é que os marinheiros árabes e indianos conheceram o verdadeiro lar das especiarias do cravinho, da noz-moscada e do macis.

Remover publicidades
Publicidade

Bibliografia

A World History Encyclopedia é um associado da Amazon e recebe uma comissão sobre as compras de livros elegíveis.

Sobre o tradutor

Filipa Oliveira
Tradutora e autora, o gosto pelas letras é infindável – da sua concepção ao jogo de palavras, da sonoridade às inumeráveis possibilidades de expressão.

Sobre o autor

James Hancock
James F. Hancock é um escritor freelancer e professor emérito da Michigan State University. Possui especial interesse na pesquisa da evolução da cultura agrícola e história do comércio. Seus livros incluem "Spices, Scents and Silk" (CABI) e "Plantation Crops" (Routledge).

Citar este trabalho

Estilo APA

Hancock, J. (2021, outubro 13). A História do Cravinho, da Noz-moscada e do Macis [The Early History of Clove, Nutmeg, & Mace]. (F. Oliveira, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1849/a-historia-do-cravinho-da-noz-moscada-e-do-macis/

Estilo Chicago

Hancock, James. "A História do Cravinho, da Noz-moscada e do Macis." Traduzido por Filipa Oliveira. World History Encyclopedia. Última modificação outubro 13, 2021. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1849/a-historia-do-cravinho-da-noz-moscada-e-do-macis/.

Estilo MLA

Hancock, James. "A História do Cravinho, da Noz-moscada e do Macis." Traduzido por Filipa Oliveira. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 13 out 2021. Web. 21 nov 2024.