O sistema de circulação sanguínea do corpo humano foi descoberto pelo médico e anatomista inglês William Harvey (1578-1657) em 1628. Ele determinou a relação entre o sistema sanguíneo das artérias e veias e as contrações regulares do coração. A descoberta, uma das mais importantes da Revolução Científica, substituiu as visões predominantes sobre o sistema sanguíneo existentes desde a Antiguidade. O trabalho de Harvey inspirou estudos posteriores sobre o sistema circulatório, particularmente a conexão com os pulmões, enquanto seu método, que utilizava experimentação e evidências para elaborar uma teoria, tornou-se a prática científica padrão.
Um Médico Eminente
William Harvey nasceu na cidade de Folkestone, na Inglaterra, em 1° de abril de 1578, filho de um próspero criador de ovelhas. Ele estudou na King's School, em Canterbury, e depois no Gonville Caius College da Universidade de Cambridge, graduando-se em 1597. De 1600 a 1602, estudou medicina na Universidade de Pádua, na Itália, onde, talvez de maneira significativa para suas futuras pesquisas, a prática da vivissecção era muito mais disseminada do que na Inglaterra. Harvey retornou à terra natal e, a partir de 1609, trabalhou como médico no Hospital São Bartolomeu, em Londres. Seu renome cresceu a ponto de ser nomeado médico do rei Jaime I da Inglaterra (r. 1603-1625) e Carlos I da Inglaterra (r. 1625-1649).
Numa carreira ilustre, o médico se tornou membro do London College of Physicians, uma associação profissional da categoria, em 1607. Seu interesse e habilidade em relação à anatomia fica evidenciado pela nomeação, em 1615, para o cargo de Lumleian Lecturer in Anatomy and Surgery da instituição, uma posição vitalícia. Seu papel de palestrante permanente requeria que Harvey realizasse muitas demonstrações de dissecação para estudantes, cirurgiões, barbeiros e quaisquer outros que comparecessem aos procedimentos, que aconteciam num recinto circular e refrigerado conhecido como teatro anatômico. Harvey fazia os cortes com um bisturi numa das mãos e, com a outra, apontava os aspectos anatômicos mais interessantes com a ajuda de um osso de baleia de ponta prateada. O médico tentava aliviar o lado sombrio que inevitavelmente envolvia tais procedimentos sangrentos com gestos dramáticos, linguagem colorida e humor ocasional. Os cadáveres para as dissecções eram adquiridos por meios legais ou nem tanto. Entre as principais fontes de cadáveres em condições adequadas estavam os hospitais e carrascos, embora os encarregados de fornecer espécimes não fossem avessos ao roubo de túmulos e outros meios nefastos para saciar o apetite dos cirurgiões-professores.
Um Mistério Milenar
Desde a Antiguidade se reconhecia a importância do sangue, considerado um dos quatro humores vitais, para o corpo humano. Ainda assim, havia pouca compreensão em relação ao seu propósito (exceto como um transportador geral de 'nutrientes') e composição. Uma técnica comum para aliviar de alguma forma as doenças era a flebotomia, ou seja, sangria. Retirar copiosas quantidades de sangue dos pacientes, utilizando todos os tipos de métodos, desde instrumentos afiados até sanguessugas, transformou-se num tratamento médico padrão, ainda que raramente bem-sucedido e que, em muitos casos, só conseguia trazer o alívio final para o infeliz sofredor.
A evidência física do sistema cardiovascular era conhecida na Antiguidade graças à dissecção e vivissecção e, particularmente, aos estudos do médico grego Galeno (129-216 d.C.), que acreditava que o sangue (referia-se ao arterial, visivelmente mais vermelho que o sangue venoso) passava por minúsculos poros de um lado do coração para o outro. Galeno parecia monopolizar o conhecimento sobre o sistema sanguíneo até o trabalho investigativo de Harvey. Houve alguns intermediários nessa jornada de descoberta, notadamente Leonardo da Vinci (1452-1519), que fez esboços privados do sistema cardiovascular, e o cientista espanhol Michael Servet (1511-1553), cuja sugestão de que o sangue passava pelos pulmões destacou-se numa obra repleta de heresias, que o levaram a ser queimado na fogueira pela Igreja Católica. Ainda assim, a conexão exata entre o coração, os pulmões e o sangue permanecia obscura. O principal problema era que um coração vivo e pulsante não podia ser visto e estudado (ou podia ser visto trabalhando apenas por alguns segundos durante a vivissecção). A investigação prática precisava ser unida às hipóteses teóricas.
Na Itália, certos pensadores estavam próximos de desvendar o verdadeiro funcionamento do sistema sanguíneo. Andrea Cesalpino (1524-1603) sugeriu que o sangue passava continuamente pelos pulmões e cunhou esse processo como "circulação". Outro importante biólogo italiano foi Hieronymus Fabricius de Aquapendente (1533-1619) que, influenciado pela abordagem de Aristóteles (384-322 a.C.) – cuja obra estava novamente despertando o interesse acadêmico -, examinou todas as espécies, não apenas aquelas semelhantes aos humanos. Fabricius acrescentou ao corpo de conhecimento corrente na época a observação das válvulas (que chamou de "pequenas portas") que controlavam o fluxo sanguíneo nos vasos sanguíneos e, assim, impediam que as pernas ficassem com excesso de oferta de sangue. A investigação começava a iluminar as sombras profundas da dúvida a respeito de como o sangue se movia ao redor do corpo.
Como assinala o historiador W. E. Burns, "o caminho do sangue através do corpo era um dos problemas mais antigos e complexos da medicina e sua eventual solução por William Harvey foi considerada a descoberta médica e biológica mais importante da revolução científica" (63).
A Metodologia de Harvey
De 1600 a 1602, Harvey estudou na Itália as obras de Cesalpino e Fabricius, além de outros autores. Ele não somente consultou o mais recente acervo de trabalhos acadêmicos internacionais sobre o tema, mas também realizou seus próprios e extensivos exames do coração em cadáveres humanos e muitos outros animais, através de incontáveis vivissecções. Este trabalho prosseguiu na Inglaterra com o estudo minucioso de organismos, que variavam de insetos em microscópios a répteis na bancada de mármore do laboratório, além de cervos em parques reais (suas conexões com a realeza foram muito úteis neste aspecto, já que ele acompanhava os monarcas em suas caçadas na floresta). Reunindo seu conhecimento prático de anatomia, adquirido ao longo de muitos anos de palestras na universidade, na sala de dissecação doméstica e na natureza, Harvey começou a formular sua própria teoria inovadora. O médico aproveitou, inclusive, a experiência prática dos açougueiros, que lhe informavam, por exemplo, que uma artéria precisava ser cortada adequadamente para drenar um animal de sangue; caso contrário, as veias permaneceriam cheias.
Harvey se propôs a examinar todas as formas de vida e todas as partes de cada organismo. Neste sentido, ele buscava a verdade de maneira aristotélica, sem medir esforços em suas pesquisas. Acima de tudo, estava interessado na pesquisa prática empírica, em acréscimo ao conhecimento teórico adquirido a partir das obras técnicas. Harvey se preocupava tanto com a teoria quanto com a prática, testando uma contra a outra. Em suas próprias palavras, sua teoria da circulação foi "confirmada por demonstrações oculares" e "iluminadas por razões e argumentos" (Wright, 145). Ou, dito de outra forma, "fatos [...] eram o labirinto; ideias e princípios aristotélicos, seu fio de Ariadne" (ibid).
Porém, Harvey não pode ser considerado como um pesquisador revolucionário ou um "homem à frente do seu tempo". Antes disso, tratava-se de um pesquisador meticuloso em seu objetivo de descobrir evidências do mundo real, como explicado no Dictionary of the History of Science [Dicionário da História da Ciência]:
O trabalho de Harvey tem sido considerado como seminal, um triunfo da "Nova Ciência" da Revolução Científica do século XVII. No entanto, ele era profundamente tradicional, mergulhado em anatomia funcional, de forma alguma o mecanicista em que o transformaram. Em 1616, ele estava dando palestras sobre os movimentos do coração, expondo seus pontos de vista com base na dissecção e vivissecção sobre os eventos do ciclo cardíaco e a relação entre as sístoles cardíaca e arterial e a diástole. (Bynum, 178)
A Teoria da Circulação de Harvey
Os métodos de Harvey podem não ter sido revolucionários, mas sua teoria amadurecida certamente pode ser classificada desta forma. Harvey expôs suas ideias na obra De Motu Cordis et Sanguinus (Sobre o Movimento do Coração e do Sangue), publicada em 1628. Para ele, havia três aspectos que evidenciavam a circulação regular de sangue ao redor do corpo humano:
- O coração é uma bomba muscular, que se enche ritmicamente de sangue (diástole) e depois se contrai (sístole) com a presença de válvulas no coração para garantir que o fluxo de sangue siga numa única direção. Todo o sangue passa pelos pulmões e não apenas uma parte, como se pensava anteriormente. O sangue viaja de e para o coração e, portanto, o sistema pode ser descrito como circular. (Além disso, a contração do coração é mais importante para o fluxo sanguíneo e o fígado não está envolvido, como preconizava a teoria de Galeno).
- A presença de válvulas nas veias profundas impede o fluxo sanguíneo do coração e, portanto, a circulação dentro das veias só pode ir numa direção, ou seja, em direção ao coração.
- A quantidade mensurável de sangue bombeado pelo coração a cada hora e a cada batida demonstra a teoria e prova que o fígado não pode estar envolvido na circulação.
Consequências e Legado
A teoria da circulação de Harvey foi rejeitada por muitos tradicionalistas a princípio; afinal, muitos ainda consideravam o coração como a própria alma dos humanos, aquele compartimento secreto onde residiam o amor, a paixão, a bondade e o pecado. A ideia de que o coração se limitava a um simples dispositivo mecânico para bombear sangue ao redor do corpo rompia dois milênios de pensamento científico, religioso e artístico. Membros do London College of Physicians rejeitaram a ideia de derrubar as teorias de longa data de Galeno. Harvey até perdeu alguns de seus próprios pacientes particulares, que viram em sua "descoberta" um sinal de que o julgamento do médico não seria mais confiável.
No entanto, a teoria encontrou adeptos nas duas décadas seguintes. O próprio Harvey contribuiu para a aceitação por meio de cartas a acadêmicos proeminentes, publicação de novos ensaios e várias demonstrações públicas. Gradualmente, a teoria passou a ser aceita pela comunidade científica em geral. Havia até simpatizantes entusiastas em outros campos como a filosofia (principalmente, embora com algumas alterações, René Descartes) e a astrologia. No mundo literário (Daniel Defoe era um admirador da obra de Harvey, por exemplo), a analogia de Harvey do coração humano governando o bem-estar do corpo como um monarca ou parlamento governando um estado foi apreciada. Com as Guerras Civis Inglesas (1641-1652) no horizonte, a teoria parecia adequada para a época.
Fundamentalmente, a teoria da circulação de Harvey recebeu confirmações através de novas descobertas, como ocorreu em 1661, com a descoberta dos capilares entre as veias e artérias por Marcello Malpighi (1628-1694), que utilizou um microscópio. Ainda restava o problema de determinar a razão pela qual o sangue circulava pelo corpo. Um exame mais aprofundado dos músculos do coração por estudiosos como Richard Lower (1631-1691) refinou a teoria de Harvey com o surgimento da hipótese de que o sangue é oxigenado (ou seja, transformado de sangue venoso para arterial) nos pulmões e não no coração. Harvey, desconhecedor da função dos brônquios (como todos os demais na época), enveredou por um caminho incorreto ao pensar que os pulmões fossem imateriais para a circulação, ao observar que os peixes tinham um sistema circulatório perfeitamente funcional, ainda que desprovidos deste órgão. Medições da pressão e do fluxo do sangue circulante feitas por Stephen Hales (1677-1761) contribuíram para uma imagem cada vez mais clara do mecanismo e das razões do funcionamento do sistema circulatório.
Houve duas outras consequências de longo prazo da descoberta da circulação sanguínea por Harvey. A primeira consequência significativa foi a importância conferida à experimentação e ao acúmulo de evidências para apoiar a teoria científica. Essa abordagem tornou-se prática padrão na ciência a partir de então. Como afirma o historiador W. Burns:
Como uma das primeiras grandes inovações na filosofia natural a ser desenvolvida e aceita amplamente com base na evidência experimental, a teoria da circulação de Harvey contribuiu para criar o prestígio dos experimentos e da ciência experimental no século XVII. (Burns, 131).
A segunda consequência significativa da descoberta de Harvey e da importância da circulação do sangue veio com o fato de que "muitos autores do século XVIII atribuíram a ela as propriedades anteriormente associadas aos outros humores" (Bynun, 45). Somente ao final do século XVIII os cientistas começaram a se interessar pela composição exata do sangue. Harvey, nesse meio tempo, reservou seus últimos anos para o estudo de embriões.
Quando os cientistas novamente voltaram seu foco para os mistérios do sangue, a descoberta já bem estabelecida de Harvey apresentou uma nova gama de possibilidades para a pesquisa científica, a exemplo de como os pacientes poderiam sofrer de deficiências de certas substâncias no sangue e, na direção oposta, como poderiam se beneficiar de acréscimos à circulação feitos via injeções e transfusões. Em resumo, um novo campo da ciência médica se abriu e continua a estender as fronteiras do conhecimentos nos dias atuais.