A Epopeia de Atrahasis: o grande dilúvio e o significado do Sofrimento

Artigo

Joshua J. Mark
por , traduzido por Willian Vieira
publicado em 06 março 2011
Disponível noutras línguas: Inglês, francês, Turco
Ouve este artigo
X
Imprimir artigo

O Atrahasis é o épico acadiano/babilônico do grande dilúvio enviado pelos deuses para destruir a vida humana. Somente o bom homem Atrahasis (seu nome é traduzido como "extremamente sábio") foi avisado do dilúvio iminente pelo deus Enki (também conhecido como Ea), que o instruiu a construir uma arca para se salvar. Atrahasis atendeu às palavras do deus, colocou dois de cada tipo de animal na arca e, assim, preservou a vida na terra.

Escrito em meados do século XVII a.C., o Atrahasis pode ser datado pelo colofão do reinado do bisneto do rei babilônico Hamurabi, Ammi-Saduqa (1646-1626 a.C.), embora o conto em si seja considerado muito mais antigo, transmitido por via oral. A história suméria do dilúvio (conhecida como o "Gênesis de Eridu"), que conta a mesma história, é certamente mais antiga (composta por volta de 2300 a.C.) a Tabuleta XI da Epopeia de Gilgamesh, que também relata a história do grande dilúvio, é ainda mais antiga do que isso.

Remover publicidades
Publicidade

A Epopeia de Gilgamesh foi escrita por volta de 2150-1400 a.C., mas a história suméria do dilúvio que ela relata é mais antiga, transmitida oralmente até aparecer por escrito. Embora a história em si se refira a uma inundação de proporções universais (assustando até mesmo os deuses que a desencadearam), a maioria dos estudiosos reconhece que ela foi provavelmente inspirada por um evento local: uma inundação causada pelos rios Tigre e Eufrates que transbordaram de suas margens.

Map of Sumer
Mapa da Suméria
P L Kessler (Copyright)

Embora as evidências arqueológicas e geológicas tenham mostrado que esse tipo de inundação era uma ocorrência bastante comum, especula-se que uma inundação particularmente memorável, por volta de 2800 a.C., serviu de base para a história. Nenhum estudioso reconhecido, sustenta atualmente o argumento de que houve uma inundação mundial como a que Atrahasis e os outros relatos descrevem (incluindo a história de Noé e sua arca no livro bíblico de Gênesis). A estudiosa da Mesopotâmia Stephanie Dalley escreve:

Remover publicidades
Publicidade

Nenhum depósito do dilúvio foram encontrados em meados do terceiro milênio, e a data do Arcebispo Ussher para o dilúvio de 2349 a.C., que foi calculada usando os números do Gênesis pelo seu valor nominal e que não reconhecia como a cronologia bíblica é altamente esquemática para tempos tão antigos, está agora fora de questão. (5)

O clérigo a que Dalley se refere é o arcebispo James Ussher (1581-1656), famoso por sua Cronologia de Ussher, que data a criação do mundo em 22 de outubro de 4004 a.C., às 18h, com base em sua datação de eventos na Bíblia. Embora a cronologia de Ussher ainda seja considerada válida pelos cristãos que defendem a teoria da terra jovem sobre a idade do mundo, seu trabalho foi desacreditado por evidências irrefutáveis em várias disciplinas diferentes desde o século XIX.

O Atrahasis

O Atrahasis começa após a criação do mundo, mas antes do surgimento dos seres humanos:

Remover publicidades
Publicidade

Quando os deuses, em vez do homem
faziam o trabalho, carregavam as cargas.
A carga dos deuses era muito grande, o trabalho muito árduo, o problema muito grande. (Tabuleta I, Dalley, 9)

Os deuses mais velhos obrigaram os deuses mais jovens a fazer todo o trabalho na terra e, após cavar os leitos dos rios Tigre e Eufrates, os deuses jovens finalmente se rebelaram. Enki, o deus da sabedoria, sugere que os imortais criem algo novo, seres humanos, que farão o trabalho em vez dos deuses. Um dos deuses, We-Ilu (também conhecido como Ilawela ou Geshtu/Geshtu-e), conhecido como "um deus com bom senso", se oferece como sacrifício para essa empreitada e é morto. A deusa Nintu (a deusa mãe, também conhecida como Ninhursag) adiciona sua carne, sangue e inteligência à argila e cria sete seres humanos masculinos e sete femininos.

ENLIL, O REI DOS DEUSES, FICA ESPECIALMENTE IRRITADO COM A CONSTANTE PERTURBAÇÃO VINDA DE BAIXO E DECIDE DIMINUIR A POPULAÇÃO ENVIANDO SECAS, PESTES E FOME PARA A TERRA.

No início, os deuses desfrutam do lazer que os trabalhadores humanos lhes proporcionam, mas, com o tempo, as pessoas se tornam barulhentas demais e perturbam o descanso dos deuses. Enlil, o rei dos deuses, fica especialmente irritado com a constante perturbação vinda de baixo e decide diminuir a população, enviando primeiro uma seca, depois uma peste e, por fim, a fome sobre a terra.

Após cada uma dessas pragas, os humanos recorrem ao deus que os concebeu pela primeira vez, Enki, e ele lhes diz o que fazer para acabar com o sofrimento e devolver a terra a um estado natural e produtivo. Enlil, finalmente, não aguenta mais e convence os outros deuses a se unirem a ele para enviar um dilúvio devastador à terra, que eliminará completamente os seres humanos.

Remover publicidades
Publicidade

Enki se compadece de seu servo, o bondoso e sábio Atrahasis, e o adverte sobre o dilúvio que se aproxima, dizendo-lhe para construir uma arca e selar nela dois de cada espécie de animal. Atrahasis faz o que lhe foi ordenado e o dilúvio começa:

A inundação veio, ninguém conseguia ver mais ninguém. Eles não podiam ser reconhecidos na catástrofe. O dilúvio rugiu como um touro,
como um asno selvagem gritando, os ventos uivavam. A escuridão era total, não havia sol. ("Tabuleta III", Dalley 31)

A deusa-mãe, Nintu, chora pela destruição de seus filhos ("ela estava saciada de tristeza, desejava cerveja em vão") e os outros deuses choram com ela.

Depois que as águas baixam, Enlil e os outros deuses percebem seu erro e lamentam o que fizeram, mas acham que não há como desfazer o que fizeram. Nesse momento, Atrahasis sai de sua arca e faz um sacrifício aos deuses. Enlil, embora antes desejasse não ter destruído a humanidade, agora está furioso com Enki por permitir que alguém escapasse com vida.

Remover publicidades
Publicidade

Enki se explica para a assembleia, os deuses descem para comer do sacrifício de Atrahasis e Enki propõe uma nova solução para o problema da superpopulação humana: criar novas criaturas que não sejam tão férteis quanto as anteriores. De agora em diante, é declarado, haverá mulheres que não poderão ter filhos, demônios que arrebatarão os bebês e causarão abortos espontâneos e mulheres consagradas aos deuses que terão de permanecer virgens. O próprio Atrahasis é levado para o paraíso para viver separado desses novos seres humanos que Nintu cria.

Outras versões da história

A Epopeia de Gilgamesh reconta a história, com mais ou menos os mesmos detalhes, mas o herói é Utnapishtim ("Ele encontrou a vida"), levado pelos deuses com sua esposa e vive para sempre na terra do outro lado do mar. A busca de Gilgamesh pela imortalidade o leva eventualmente a Utnapishtim, mas sua jornada não lhe traz nenhum benefício, pois a vida eterna é negada aos mortais. A versão suméria do conto tem Ziusudra ("O Muito Distante") como herói, mas conta a mesma história.

A história mais conhecida do grande dilúvio, é claro, é a do livro bíblico de Gênesis 6-9, no qual Deus se enfurece com a maldade da humanidade e a destrói com um dilúvio, exceto pelo justo Noé e sua família. A obra bíblica se baseia na versão oral anterior da história do dilúvio da Mesopotâmia, repetida nas obras citadas acima e que também pode ter influenciado um texto egípcio conhecido como O livro da vaca celestial, uma parte do qual data do primeiro período Intermediário do Egito (2181-2040 a.C.).

O livro da vaca celestial conta como, depois que o deus do sol Rá criou os seres humanos, eles se rebelaram contra ele e ele decidiu destruí-los. Ele enviou a deusa Hathor como uma extensão de si (conhecida como o olho de Rá) para massacrar a humanidade, mas, depois que ela matou muitos, ele se arrependeu da decisão. Ele então mandou tingir grandes quantidades de cerveja de vermelho para parecer sangue e ordenou que fosse colocada no caminho de Hathor. Ela bebeu a cerveja, adormeceu e, mais tarde, acordou como a deusa amorosa e amiga da humanidade que geralmente é retratada.

Quase todas as culturas têm alguma forma de história do grande dilúvio e isso é frequentemente citado como prova de que deve ter havido um dilúvio cataclísmico em algum momento. No entanto, isso não é necessariamente verdade, pois é bem possível que uma história popular de dilúvio, repetida ao longo dos tempos, tenha inspirado contadores de histórias em diferentes regiões. Dalley comenta:

Todas essas histórias de inundação podem ser explicadas como derivadas de um original mesopotâmico, usado em contos de viajantes por mais de dois mil anos, ao longo das grandes rotas de caravanas da Ásia Ocidental: traduzidas, bordadas e adaptadas conforme os gostos locais para dar origem a uma miríade de versões divergentes, algumas das quais chegaram até nós. (7)

Atrahasis, como observado, não é a versão mais antiga da história do dilúvio da Mesopotâmia e a versão oral anterior quase certamente influenciou as versões de outras culturas, incluindo a egípcia e a hebraica. Na versão egípcia, a rebelião da humanidade e a misericórdia de Rá levam a um relacionamento mais próximo com os deuses e, na versão bíblica, o mesmo é sugerido pelo pacto de Deus com Noé depois que as águas do dilúvio baixam. No Atrahasis, os deuses permitem que os seres humanos continuem existindo com a condição de que não viverão para sempre nem poderão se reproduzir tão abundantemente quanto antes.

Conclusão

A história teria servido, além de simplesmente como entretenimento, para explicar a mortalidade humana, os infortúnios que acompanham o parto e até mesmo a morte de um filho. Como a superpopulação e o barulho resultante já haviam provocado o terrível dilúvio que quase destruiu a humanidade, a perda de um filho talvez pudesse ser mais facilmente suportada com o conhecimento de que essa perda ajudava a preservar a ordem natural das coisas e mantinha a paz com os deuses.

O mito teria servido ao mesmo propósito básico que essas histórias sempre tiveram: a garantia de que o sofrimento humano individual tem algum propósito ou significado maior e não é simplesmente uma dor aleatória e sem sentido. O Atrahasis, assim como a história da arca de Noé, é finalmente uma história de esperança e de fé em um significado mais profundo para as tragédias da experiência humana.

Remover publicidades
Publicidade

Sobre o tradutor

Willian Vieira
Meu nome é Willian Vieira, mas sou conhecido como William Pesquisador devido à minha paixão por desvendar os mistérios das civilizações antigas. Minha jornada acadêmica me levou a um aprofundamento notável na Suméria, a primeira civilização da humanidade.

Sobre o autor

Joshua J. Mark
Joshua J. Mark é cofundador e diretor de conteúdos da World History Encyclopedia. Anteriormente, foi professor no Marist College (NY), onde lecionou história, filosofia, literatura e redação. Ele viajou bastante e morou na Grécia e na Alemanha.

Citar este trabalho

Estilo APA

Mark, J. J. (2011, março 06). A Epopeia de Atrahasis: o grande dilúvio e o significado do Sofrimento [The Atrahasis Epic: The Great Flood & the Meaning of Suffering]. (W. Vieira, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-227/a-epopeia-de-atrahasis-o-grande-diluvio-e-o-signif/

Estilo Chicago

Mark, Joshua J.. "A Epopeia de Atrahasis: o grande dilúvio e o significado do Sofrimento." Traduzido por Willian Vieira. World History Encyclopedia. Última modificação março 06, 2011. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-227/a-epopeia-de-atrahasis-o-grande-diluvio-e-o-signif/.

Estilo MLA

Mark, Joshua J.. "A Epopeia de Atrahasis: o grande dilúvio e o significado do Sofrimento." Traduzido por Willian Vieira. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 06 mar 2011. Web. 20 nov 2024.