Na Idade Média, as atitudes relacionadas ao corpo humano eram cheias de contradições: glorificado, oprimido, bem cuidado e castigado. Uma recente exibição no Swiss National Museum em Zurich – cobiçado, bem cuidado, martirizado. Corpos na Idade Média – reavaliou as maneiras como os europeus medievais viam, concebiam e imaginavam o corpo humano. Nessa entrevista, James Blake Wiener faz perguntas à Curadora, Christine Keller, a respeito dos principais pontos da exibição.
JBW: Dra. Keller, muito obrigado por falar comigo, em nome da World History Encyclopedia (WHE).
Tendemos a pensar a Idade Média como uma época dominada pela fé. No entanto, devemos nos lembrar que as pessoas que viviam na Europa Medieval também participavam nas atividades sociais seculares e não religiosas. O que tinha em mente quando decidiu colocar em exibição a interação entre a presença física e os interesses e buscas seculares?
CK: Ao selecionar os temas e peças, tentamos mostrar não somente a visão da Igreja medieval, mas também a atitude secular em relação ao corpo através de trechos da literatura medieval – como novelas eróticas, arte profana e temas como o esporte. Tentamos mostrar que, embora a Igreja propagasse certas ideias a respeito do físico (em particular o conceito cristão da sexualidade humana como pecado), muitos testemunhos desse período, como a literatura erótica popular, relatórios de doutores seculares e emblemas obscenos na forma de genitais personificados, falam uma linguagem contrária à moralidade da Igreja.
JBW: Enquanto a Igreja Católica apresentava o corpo como a sede do desejo e pecado, as representações visuais do corpo de Jesus Cristo e a feminilidade da Virgem Maria eram omnipresentes. Assim também, as partes do corpo que os crentes veneravam como relíquias sagradas, as quais poderiam curar o doente, trazer vitória em uma batalha e curar a infertilidade. O que você pode nos dizer a respeito dos relicários e outros objetos de devoção em exibição? Quais segredos eles revelam a respeito da imagem corporal medieval?
CK: A exibição inclui um relicário vindo de Limoges, datado do final do século XII, bem como relicários figurativos como bustos e braços dos séculos XIV e XV. Eles dão um testemunho a respeito do grande poder e veneração a respeito das relíquias dos santos. Relicários figurativos como bustos, braços, pernas ou pés ressurgem ou incorporam os ossos ou relíquias secundárias neles armazenadas (como cabelos, relíquias de contato etc.). Como os denominados “relicários falantes”, eles tornam mais visíveis os poderes sagrados, abstratos. É relevante para a imagem medieval do corpo que as relíquias simultaneamente reflitam a morte e a vida e que os santos venerados nas relíquias fossem vistos como mediadores entre este mundo e o além. Os bustos relicários esculpidos em madeira do século XIV (por exemplo o relicário de Santa Úrsula) foram pintados de tal modo que a superfície parecesse carne, os olhos animados e vivos. Nesses bustos, os santos se apresentavam, a quem os via, como “mortos vivos”.
JBW: A morte era uma preocupação imediata e ameaçadora para nossos antepassados medievais. A sobrevida média era muito menor que atualmente e a doença era desenfreada. Como a preocupação com a morte e a crença em uma vida eterna – no dia da Ressurreição – moldou as concepções do corpo naquela época?
CK: Morte e mortalidade eram onipresentes e um assunto importante na Idade Média. À vista da ressurreição, tomava-se cuidado durante a vida para se assegurar que o viver de cada um permanecesse o mais live possível de pecados e vícios ou que estes pudessem ser perdoados durante a vida. Em relação ao corpo, isso significava, entre outras coisas: gula, luxúria, vaidade, soberba, preguiça, indolência. O conceito da ressurreição corporal foi caracterizado pelas declarações de um dos primeiros Padres da Igreja, Agostinho de Hippo (354dC-430dC): de acordo com sua interpretação, a condição física à época da morte era irrelevante para a ressurreição. Por exemplo, se um cadáver fosse atacado por animais ou queimado, ele ainda emergia do túmulo intacto no dia da ressurreição e na idade de 30 ou 33 anos, a idade que Jesus tinha quando morreu. Nesse sentido, representações do ressurrectos mostrava-os com seus corpos nus e intactos.
JBW: Foi durante a Idade Média que surgiram as primeiras medidas em saúde pública: a prática da quarentena, a implantação de hospitais, o cuidado médico e a assistência social. Consequentemente, havia um interesse na saúde, na higiene e clínicas de repouso, o que está delineado na exibição. Ficarei grato se você puder compartilhar conosco alguns detalhes a respeito do banho e aplicação de ventosas durante a Idade Média. Ao que me parece, muitos leitores ficarão surpresos em saber como eram, na realidade, corriqueiras estas e outras práticas.
CK: A teoria medieval de saúde baseava-se na “teoria dos quatro humores” e os quatro elementos. Se os humores [sangue, fleuma (secreções), bile amarela e negra] estivessem desequilibrados, as pessoas adoeciam. Para manter o equilíbrio, um excesso de substâncias precisava ser equalizado. Salões de banhos (com banhos para suar), ventosas e sangrias – ou a aplicação de sanguessugas – eram utilizados com esse objetivo. Numerosos guias sanitários, particularmente espalhados por todo lado durante a Idade Média, descreviam a época adequada para aplicação de tais métodos e usavam ilustrações – o denominado Homem Veia – para indicar as partes do corpo e a época adequadas para a sangria. O cuidado com a saúde foi um assunto importante e espalhado por toda a Idade Média.
JBW: Corpos na Idade Média ressalta que enquanto atitudes medievais para com o corpo e forma humanos fossem contraditórios, muita coisa permaneceu idêntica através dos séculos. Seja por intermédio da busca pela perfeição física ou uma preocupação com a saúde e doença, não somos de todo diferentes de nossos antepassados medievais. O que você espera que os visitantes ganhem com uma visita à exposição? Além disso, o que você deseja que o público aprenda a respeito da Idade Média como resultado de seu trabalho?
CK: Uma pesquisa no local da exibição demonstrou que a mostra a respeito do corpo na Idade Média inspirou a maioria de nossos visitantes a pensar a respeito do corpo na atualidade. Esperamos que com essa mostra possamos mostrar uma visão algo diferente da Idade Média e que possamos romper os estereótipos ainda prevalentes de uma época rígida e contra o corpo.
JBW: Dra. Keller, muito obrigado por compartilhar conosco sua expertise com nossa audiência. Em nome da World History Encyclopedia, desejo que tenha muitas aventuras felizes nas pesquisas.
Christine Keller é historiadora de arte e conservadora do Museu Nacional Suíço.