O conceito e a função dos anjos no judaísmo antigo foram alguns dos muitos elementos incorporados na visão cultural e religiosa contemporâneas. A palavra hebraica malakh foi traduzida para o grego angelos, ambas indicando não sua natureza, mas sua função como "aquele que é enviado" ou "mensageiro". Anjos eram uma forma de adivinhação ou a maneira dos deuses comunicarem sua vontade aos humanos.
A visão antiga do mundo
Todos os povos antigos percebiam seu mundo como uma estrutura de um universo dividida em três camadas:
1 - Céus - o domínio dos deuses nas alturas. Geralmente havia um "rei dos deuses", que dominava sobre gradientes inferiores e subservientes de divindade. O nível mais baixo de seres divinos eram os daemons (palavra grega para "atendente"). Com o tempo, os "demônios" se tornaram responsáveis pelo mal e pelo que dava errado na vida.
2 - Terra - o domínio dos animais e humanos. As divindades inferiores recebiam a responsabilidade por áreas específicas da cultura humana, como a agricultura, o artesanato e a guerra. Deuses e divindades inferiores podiam possuir humanos, com a habilidade de falar em seu nome. Esses oráculos eram tanto uma pessoa quanto um lugar.
3 - Submundo - a terra dos mortos. Originalmente, o lugar para todos os mortos. As ideias se expandiram em certo momento para descrever lugares separados para os justos e os malignos. Deuses e divindades inferiores eram os únicos que podiam visitar a terra dos mortos e retornar.
Um conceito cultural compartilhado em todas as religiões antigas era a experiência de encontros divinos com os deuses e divindades inferiores. Sonhos ou visões, tais encontros eram também descritos como epifanias, manifestações do divino na terra.
Ação divina
Reis tinham cortes de nobres e conselheiros. Esse conceito era projetado para as cortes celestiais com o rei dos deuses cercado de seres divinos que funcionavam da mesma forma. Estudiosos se referem a isso como "ação divina". Esses seres falavam pelos deuses para entregar mensagens aos humanos. Nessa função, eles simultaneamente validavam os ensinamentos e códigos legais dos deuses.
Na religião mesopotâmica, esses seres eram comumente chamados de sábios, que ajudavam a organizar o universo e transmitiam as artes civilizadas da literatura e tecnologia. Temos algumas representações dos deuses e anjos com visões antropomórficas, adicionando armas, elmos e anéis. No culto persa do zoroastrismo, Ahura Mazda, ser de pura bondade, emanava o spenta mainyu (espírito ou mentalidade criativa) em pares de homens e mulheres que procriavam. Esses seres criaram tanto o universo físico como os humanos. Do lado oposto da polaridade de Ahura Mazda estava druj, caos, desordem, personificado como Arimã.
Os spenta mainyu eram comumente chamados pelo termo yazata, para distingui-los dos agentes de Arimã. Yazata era a palavra persa para um ser digno de louvor por meio de canções e sacrifícios. Assim havia a polaridade opositora do bem contra o mal (anjos contra demônios), com batalhas constantes entre as duas forças. A ideia de que humanos teriam um anjo da guarda veio do zoroastrismo.
O Céu judaico
Com o contato cultural pelo comércio e pela guerra, os judeus absorveram conceitos de seus vizinhos. Os judeus concebiam uma hierarquia semelhante de poderes nos céus: filhos de Deus (entendidos como anjos que se dirigiam a Deus em Genesis 1 e Genesis 6), arcanjos, serafins e querubins. Os serafins ("ardente") e querubins eram a mais alta patente de anjos que cercavam o trono de Deus e continuamente cantavam seus louvores.
A história fundacional para a ideia de que os judeus eram monoteístas (o conceito moderno de "crença em um Deus") é de quando Moisés recebe os dez mandamentos de Deus no Monte Sinai: "Eu sou o Senhor seu Deus... não terás outros deuses diante de mim" (Deuteronômio 5:6-7). Isso não indica que outros deuses não existam. Era o Deus de Israel que criou todos os outros deuses e que em última instância os julgaria e destruiria. "nenhum outro deus diante de mim" era um mandamento de que os judeus não deveriam adorar nenhum outro deus. Combinamos o louvor com a crença e adoração, que são todos termos modernos, mas o louvor no mundo antigo sempre significou sacrifício. Sacrifícios (de animais, vegetais, libações) deveriam ser oferecidos apenas ao Deus de Israel.
Os textos judaicos consistentemente se referem à existência de deuses das nações (no grego, ethnos, que significa "grupos étnicos"). Por exemplo, em Salmos 82:1 se lê: "Deus tomou seu lugar no conselho divino; no meio dos deuses ele julga". Na história do êxodo dos judeus do Egito, Deus lutou contra os sacerdotes e deuses do Egito para demonstrar quem controla a natureza. Isso faz pouco sentido se a existência e autoridade deles não fosse reconhecida: "...executarei juízo sobre todos os deuses do Egito" (Êxodo 12:12). O que se tornou o conceito judaico do monoteísmo demorou séculos para se desenvolver.
Um exemplo judaico da ação divina é encontrado no Livro de Jó (reunido dentre os séculos 7 ao 3 a.C.):
E num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também o acusador entre eles. Então o Senhor disse ao acusador: Donde vens? E Satanás respondeu ao Senhor, e disse: De rodear a terra, e passear por ela.
(Jó 1:6-8)
O "acusador" é chamado ha-satan em hebraico, o que significa "obstáculo" ou "adversário", o que descreve sua função. Seu trabalho era colocar obstáculos na frente dos humanos, forçando-os a fazerem uma escolha entre o bem e o mal. Como o acusador, ele funcionava como a promotoria de Deus, em certo sentido. Deus ordenou ha-satan a oprimir Jó em tudo, exceto em sua vida. Deus tinha certeza de que Jó não o abandonaria. Detalhes foram adicionados com o tempo a esse personagem, de modo que seu nome formal tornou-se Satanás, incluindo o pano de fundo de tratar-se de um anjo rebelde caído. Satanás se tornou o inimigo opositor de Deus e dos humanos e é sempre justaposto a anjos leais e benevolentes.
Anjos nas Escrituras Judaicas
Através do livro de Gênesis, Deus e anjos aparecem juntos na terra, mas há geralmente uma "metamorfose" (transformação) na justaposição entre Deus e os anjos. Quando Hagar e seu filho Ismael são expulsos do acampamento por Sara, ela recebe revelações tanto de Deus quanto de anjos. Um anjo diz a ela que seu filho Ismael sobreviveria, mas "Deus abriu seus olhos" e "Deus estava como o menino" (Genesis 21:19-20).
Numa história semelhante em Gênesis 18:1-2, "O Senhor apareceu a Abraão perto dos carvalhos de Manre, quando ele estava sentado à entrada de sua tenda, na hora mais quente do dia. Abraão ergueu os olhos e viu três homens em pé, a pouca distância". Abraão ofereceu a eles hospitalidade. "'Onde está Sara, sua mulher?', perguntaram. 'Ali na tenda', respondeu ele. Então um deles disse, 'voltarei a você na primavera, e Sara, sua mulher, terá um filho'" (Gênesis 18:9-10). Não é claro se é um anjo ou se é Deus que está falando.
Também vemos essa mistura entre Deus e um anjo no sacrifício de Isaque:
"Tome seu filho, seu único filho, Isaque, a quem você ama, e vá para a região de Moriá. Sacrifique-o ali como holocausto num dos montes que lhe indicarei"... Mas o Anjo do Senhor o chamou do céu... "Não toque no rapaz", disse o Anjo. "Não lhe faça nada. Agora sei que você teme a Deus, porque não me negou seu filho, o seu único filho. "
(Gênesis 22:2-12)
Aqui, o "Anjo do Senhor" identifica a si mesmo como Deus quando usa "me".
Por toda a Escritura Judaica, a frase "um anjo do Senhor" distinguia esses seres de divindades inferiores de outros deuses. O hebraico para "anjo" (malakh) pode ter derivado de m'lachah, ("trabalho"), usado mais frequentemente para descrever detalhes do mandamento do Shabat. Deus descansou após a criação do mundo, então os anjos tinham que fazer o "trabalho" de Deus na terra. Sua função não era apenas de mensageiros do plano de Deus mas também de agentes e guardiães, que tanto puniam os judeus pela sua negligência aos mandamentos quanto resgatava os judeus dos opressores. Em Salmos 91:9-13 se lê:
Porque fizeste do Senhor teu refúgio, do Altíssimo tua habitação, nenhum mal te sucederá, nem praga alguma chegará à tua tenda.
Porque aos seus anjos dará ordem a teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.
Eles te sustentarão nas suas mãos, para que não tropeces com o teu pé em pedra. Pisarás o leão e a cobra; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.
Anjos depois se tornaram alinhados com a perseguição dos judeus. No livro de Daniel, ele é resgatado por um anjo da cova dos leões, e um anjo resgata seus três amigos da fornalha de fogo.
Os Livros dos Profetas
Os profetas de Israel eram o equivalente judaico aos oráculos, no conceito da adivinhação, na forma como deuses se comunicavam com humanos. Possuídos pelo espírito de Deus, o que diziam era considerado a palavra do próprio Deus. Temos pouquíssimas referências a anjos na terra, mas visões detalhadas do céu.
Ezequiel era tanto sacerdote quanto profeta, e viveu durante a conquista da Babilônia no século 6 a.C. Ezequiel tinha uma visão complicada da presença de Deus no seu trono:
Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande nuvem, com um fogo revolvendo-se nela, e um resplendor ao redor, e no meio dela havia uma coisa, como de cor de âmbar, que saía do meio do fogo. E do meio dela saía a semelhança de quatro seres viventes. E esta era a sua aparência: tinham a semelhança de homem. E cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles quatro asas. E os seus pés eram pés direitos; e as plantas dos seus pés como a planta do pé de uma bezerra, e luziam como a cor de cobre polido. E tinham mãos de homem debaixo das suas asas, aos quatro lados; e assim todos quatro tinham seus rostos e suas asas. Uniam-se as suas asas uma à outra; não se viravam quando andavam, e cada qual andava continuamente em frente. E a semelhança dos seus rostos era como o rosto de homem; e do lado direito todos os quatro tinham rosto de leão, e do lado esquerdo todos os quatro tinham rosto de boi; e também tinham rosto de águia todos os quatro. Assim eram os seus rostos. As suas asas estavam estendidas por cima; cada qual tinha duas asas juntas uma a outra, e duas cobriam os corpos deles.
(Ezequiel 1:4-11)
Deve ser observado que artistas sempre tiveram dificuldade em retratar essa complicada visão do trono.
Anjos como Mediadores
Após a conquista de Alexandre, O Grande (que reinou entre 336 e 323 a.C.), a cultura, religião e práticas gregas permearam as regiões do Oriente Médio. Começamos a ter mais descrições de anjos como mediadores na literatura. Isso distinguia Deus da mitologia grega, onde os deuses vinham à terra com frequência e, como Zeus, se uniam a mulheres humanas, onde a prole se tornava "os heróis da Grécia Antiga". O Deus de Israel criava pela fala, não procriava e nesse último período, não visitava humanos na terra.
O livro apócrifo dos Jubileus tem a referência mais antiga de Deus dando a Lei de Moisés no Sinai por um mediador angélico: "e [Deus] disse ao anjo da presença, 'escreva para Moisés'" (1:27). O filósofo judeu Filo de Alexandria escreveu que Moisés tinha recebido o título de mediador em seu papel de estabelecer a Lei (Vida de Moisés). O historiador judeu do primeiro século, Flávio Josefo (36-100 d.C.) explicou: "e para nós, aprendemos de Deus a mais excelente de nossas doutrinas, e a parte mais santa de nossa Lei, por anjos [em grego: "embaixadores"] (Antiguidades Judaicas, XV:163).
Após a morte de Alexandre, O Grande, durante as Guerras dos Diádocos, seus generais dividiram a região, dominada pelo Império Selêucida na Síria, e pela Dinastia Ptolomaica do Egito. A Revolta dos Macabeus expulsou os gregos, mas então Roma conquistou a Judeia em 63 a.C. E no entanto o Reino de Deus ainda não se tornara manifesto.
Judaísmo Apocalíptico e Os Livros de Enoque
Durante esse período, não temos mais profetas tradicionais. Em vez disso, videntes entravam em transe extático e tinham jornadas extracorpóreas aos Céus, onde anjos revelavam segredos ("apocalipse" significa "segredos revelados" em grego), com uma urgência renovada e restaurar a nação de Israel. Na tradição da antiga literatura sapiencial, todos os aspectos do universo, incluindo os mistérios da natureza e, especialmente, o destino dos humanos no céu e no inferno eram agora transmitido por anjos.
Há uma série de textos atribuídos a Enoque, que datam de 300 a 100 a.C. Gênesis 5 relata os descendentes de Adão: "E andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou" (Gênesis 5:24). Uma possível interpretação é que Enoque não morreu fisicamente mas foi trasladado para o céu. Assim, Enoque era considerado um guia válido para detalhes do céu que foram adicionados nesse livro.
1ª Enoque conta a história dos "filhos de Deus" (os anjos) que se reproduziram com mulheres humanas, uma das razões pelas quais Deus limitou o tempo de vida dos humanos. Anjos também eram condenados por ensinar aos humanos a arte da metalurgia, que levou ao mal das armas e do dinheiro. Eles foram lançados ao abismo, parte mais profunda do She'ol (inferno). Porque Enoque estava no céu, eles clamaram que intercedesse perante Deus para que os libertasse, sem sucesso. Condenados ao inferno, esses anjos caídos permanecem sobre o comando de Satanás. Como embaixadores de Satanás, eles agem como seus agentes para visitar a terra e tentar os humanos a pecar.
Num texto subsequente conhecido como O Livro dos Vigilantes, temos nomes e atribuições dos anjos:
Uriel,..., que está sobre o mundo e sobre o Tártaro.
Rafael,..., que toma vingança no mundo dos luminares.
Miguel,..., a saber, aquele que está posto sobre a melhor parte da humanidade e sobre o caos.
Saraqael,..., que está posto sobre os espíritos, que pecam em espírito.
Gabriel,..., que estão sobre o Paraíso e as serpentes e os querubins.
Remiel,..., a quem Deus pôs sobre aqueles que se levantam."
(Enoque 20)
Em Enoque 46 e 48, encontramos o "filho do homem", que seria o juíz final de todos os humanos. Cristãos depois afirmariam que o "filho do homem" era uma forma pré existente de Jesus Cristo como messias.
Ali vi um que tinha a cabeça de dias, e sua cabeça era branca como a lã, e com ele estava outro ser cujo semblante tinha a aparência de um homem, e sua face estava cheia de benevolência, como um dos santos anjos. E eu perguntei ao anjo que foi comigo e me mostrou todas as coisas escondidas, a respeito daquele filho do homem, quem ele era, e de onde era, e por que foi com a cabeça de dias? E ele respondeu e me disse: "Este é o filho do homem que tem justiça, com quem habita a justiça, e que revela todos os tesouros daquele que está escondido, porque o Senhor dos espíritos o escolheu, e cujo quinhão tem proeminência diante do Senhor dos espíritos, em retidão, para sempre... E naquela hora o filho do homem foi nomeado na presença do Senhor dos espíritos, e seu nome perante a cabeça de dias. Sim, antes que o sol e os signos fossem criados, antes que as estrelas dos céus fossem feitas, seu nome foi dito perante o Senhor dos espíritos. Ele será como apoio para os justos, no qual ficarão para sempre e não cairão, e ele será a luz para os gentios, e a esperança dos atribulados de coração. Todos os que habitam na terra se dobrarão e o adorarão, e louvarão, e bendirão e celebrarão com canções o Senhor dos espíritos.
Seitas Judaicas
Vários grupos de judeus tinham suas próprias visões sobre os anjos. Os essênios em Qumran sistematizaram uma hierarquia de anjos. Na batalha final, um "príncipe da luz" e outros anjos lutarão junto com os "filhos da luz" (seu próprio grupo) contra os "filhos das trevas" (aqueles que discordavam de suas visões). Sabemos pouco sobre as visões dos fariseus devido a uma ausência de qualquer literatura farisaica sobrevivente do primeiro século, embora os fariseus tenham promovido o conceito de uma ressureição final dos mortos. Tanto Josefo como Atos dos Apóstolos afirmam que os saduceus não criam em anjos, nem na ressureição dos mortos. No entanto, os saduceus eram conhecidos por aceitar somente o que estava escrito nas Escrituras, e talvez desaprovassem os conceitos apócrifos da angelologia, considerando-os muito místicos.
Pela divulgação de que os sacrifícios seriam somente ao Deus de Israel, há pouca evidência de que um culto a anjos tenha emergido. No entanto, um texto conhecido como Sefer HaRazim ("Livro dos Segredos") afirmou que foi aí que o Rei Salomão obteve sua sabedoria, que incluía poderes mágicos. O texto data do final do século III e início do século IV d.C. mas baseou-se em material mais antigo. Temos evidência de papiros mágicos judaicos, assim como inscrições, amuletos, óstracos (escritos em cacos de cerâmica) e tigelas especiais de encantamento. Reconhecendo o Deus de Israel como um ser poderoso, gentios também utilizaram esses encantamentos judaicos. Isso não era uma adoração a anjos, mas petições aos anjos como representantes de Deus para benefícios individuais e da comunidade.