Na Europa, no século XIX, um dispositivo interessante começou a ser visto em cemitérios: uma grade de ferro. Consistia em uma gaiola de ferro erguida sobre um túmulo para manter o corpo do falecido a salvo dos “ressurreicionistas” - mais conhecidos como “ladrões de cadáver”. Estes homens desenterrariam cadáveres sepultados recentemente e os entregariam, por dinheiro, a médicos que desejassem estudar anatomia. A dissecação humana era ilegal na época e até a Lei de Anatomia de 1832, os únicos cadáveres com os quais um médico poderia estudar eram aqueles que haviam sido executados por crimes capitais.
Eles não forneciam aos médicos o número de cadáveres ou a variedade de causas de óbito que eram necessárias para melhor entender anatomia, fisiologia e patologia. Os médicos reconheciam que a melhor maneira de tratar um paciente era entender como os órgãos do corpo funcionavam em conjunto e o que poderia afetá-los, mas era-lhes negado o acesso. Estes médicos pagaram aos ressurreicionistas grandes somas de dinheiro ao longo dos anos por cadáveres, sendo que muito provavelmente ficariam surpresos ou até mesmo se divertiriam se soubessem que, no antigo Egito, a prática da dissecação era rotineira, mas que ninguém na área médica pensava em aproveitar-se dessa ocorrência.
Os antigos embalsamadores egípcios não discutiam seu trabalho com os médicos, e estes, por sua vez, aparentemente não consideravam questionar os primeiros. Os médicos no Egito curavam seus pacientes através de feitiços, técnicas médicas simples, encantamentos e pelo uso de ervas e outras substâncias de ocorrência natural. Sua compreensão da anatomia e fisiologia era pobre porque, embora Imhotep (c. 2667-2600 a.C.) houvesse argumentado em seus tratados que as doenças poderiam ocorrer naturalmente, o entendimento predominante era que se deviam a elementos sobrenaturais. Um estudo de medicina interna, portanto, teria sido considerado uma perda de tempo, uma vez que as doenças de uma pessoa eram provenientes de fontes externas.
A Natureza da Doença
Até o século XIX, o mundo não tinha nenhuma compreensão da teoria dos germes. O trabalho de Louis Pasteur, mais tarde confirmado pelo cirurgião britânico Joseph Lister, provou que diversas doenças são causadas por bactérias e que medidas podem ser tomadas para minimizar os riscos das mesmas. Os antigos egípcios, como qualquer outra civilização da sua época, não tinham tal compreensão. Considerava-se que a doença era causada pela vontade dos deuses (para punir o pecado ou demonstrar uma má ação), através da intervenção de um espírito ou espíritos malignos, ou provocada pela presença de um fantasma.
Mesmo nos casos em que um diagnóstico para um problema era sugerido por alguma causa física definida, como doença hepática, por exemplo, ainda se considerava que era proveniente de uma fonte sobrenatural. Os textos médicos egípcios reconhecem a doença hepática, mas não aceitam a função do fígado. Da mesma forma, os médicos entenderam a função do útero, mas não como ele funcionava e nem mesmo sua conexão com o resto do corpo de uma mulher; eles acreditavam que era um órgão conectado com as outras partes do corpo. O coração era considerado a sede do intelecto, da emoção e da personalidade, enquanto que o cérebro era considerado inútil, apesar de haver documentação de casos de cirurgia cerebral. Entendia-se que o coração era uma bomba e que veias e artérias movimentavam sangue através do corpo, sendo que a doença cardíaca era diagnosticada e tratada por medidas reconhecíveis atualmente (como mudança de dieta), porém ainda se acreditava que a causa básica da doença provinha de entidades sobrenaturais.
Médicos Famosos
Mesmo assim, os médicos egípcios antigos eram altamente respeitados e por uma boa razão: seus procedimentos parecem ter sido amplamente eficazes. Os hititas são conhecidos por terem solicitado ao Egito fornecimento de médicos, assim como os assírios e persas. Os gregos tinham uma enorme admiração pelas práticas médicas egípcias, embora não levassem muito a sério os aspectos mágicos do tratamento. O médico romano Galeno (126-c. 216 d.C.) estudou em Alexandria, no Egito, e, antes dele, Hipócrates, o pai da medicina moderna (c. 460-370 a.C.), fez as mesmas afirmações sobre as doenças que Imhotep havia feito 2.000 anos antes.
Homens e mulheres poderiam ser médicos, sendo que vários são mencionados nominalmente. Alguns deles são:
Merit Ptah (c. 2700 a.C.), médica-chefe da corte real e a primeira mulher conhecida pelo nome em medicina e ciência.
Imhotep (c. 2667-2600 a.C.), arquiteto do faraó Geser, que também escreveu tratados médicos e mais tarde foi endeusado como um deus da medicina e da cura.
Hesyre (também conhecido como Hesy-Ra, c. 2600 a.C.), dentista e médico-chefe do faraó; o primeiro dentista conhecido pelo nome na história.
Pesehet (c. 2500 a.C.), dama supervisora das médicas e, possivelmente, professora na escola médica de Saís, fundada aproximadamente em 3.000 a.C.
Qar (c. 2350 a.C.), médico real no reinado do faraó Unas, da VI Dinastia, e enterrado com seus instrumentos cirúrgicos de bronze, os quais acredita-se serem os mais antigos do mundo.
Mereruka (c. 2345 a.C.), vizir do faraó Teti, da VI dinastia, cuja tumba em Saqqara apresenta inscrições com mais títulos que qualquer outra nas proximidades. Ele era o supervisor dos médicos do faraó.
Irenakhet (Primeiro Período Intermediário do Egito, 2181-2040 a.C.), cuja ampla área de especialidades o tornou único na história médica egípcia. Muitos médicos especializaram-se em uma única área, enquanto Irenakhet possuía muitos títulos.
Outros médicos são citados do Império Médio (2040-1782 a.C.) até o Período Ptolomaico (323-30 a.C.), incluindo a médica Cleópatra (não a famosa rainha), que escreveu textos médicos mencionados por escritores posteriores, tendo sido estudada por Galeno.
Magia e Medicina
Todos esses médicos praticavam uma combinação do que hoje consideraríamos medicina prática e magia. Como as doenças provinham de fontes sobrenaturais, era razoável concluir que tratamentos sobrenaturais eram o melhor recurso. Atualmente, pode-se encarar tais práticas com ceticismo, mas elas eram consideradas bastante eficazes e certamente úteis em sua época.
Estudiosos e médicos nos tempos modernos são incapazes de comprovar o quão eficazes eles eram, uma vez que são incapazes de identificar com certeza os materiais, doenças e procedimentos mencionados em muitos dos textos. Algumas palavras egípcias não correspondem a nenhuma planta ou objeto conhecido que fosse utilizado no tratamento ou a qualquer doença conhecida. Embora os médicos egípcios da antiguidade não possuíssem um entendimento completo das funções dos órgãos internos, eles conseguiram, de alguma forma, tratar seus pacientes de forma razoável, fazendo com que suas prescrições e conduta fossem copiadas e aplicadas durante milênios. Os gregos, particularmente, achavam admiráveis as práticas médicas egípcias. Platão menciona os médicos egípcios em seus Diálogos e até invoca-os, como alguém faria a um deus. Os gregos, de fato, serviram como os mensageiros pelos quais as práticas médicas egípcias alcançaram um público mais amplo. A egiptóloga Margaret Bunson explica:
Os gregos honraram muitos dos primeiros médico-sacerdotes egípcios, especialmente Imhotep, a quem equipararam com seu deus Asclépio. Contudo, quando registraram as condutas e procedimentos médicos egípcios incluíram a magia e os encantamentos usados pelos sacerdotes, os quais fizeram a medicina parecer trivial ou um aspecto supersticioso da vida egípcia. Os encantamentos mágicos eram, de fato, uma parte da medicina egípcia...contudo, estudiosos há muito reconhecem que os egípcios observaram cuidadosamente várias enfermidades, ferimentos e deformidades físicas, oferecendo vários tratamentos para o seu alívio. (158)
O deus Heka atuou tanto na medicina quanto na magia, sendo que seu bastão de duas serpentes entrelaçadas se tornaria o caduceu de Asclépio dos gregos e, atualmente, o símbolo da profissão médica. Sekhmet, Serket (também Selket), Nefertum, Bes, Tawawret e Sobek estavam todos associados à saúde e à cura sob algum aspecto, assim como deusas poderosas como Ísis e Hator, e até mesmo deuses com personalidades mais sombrias e geralmente temidos, como Set ou o deus-demônio Pazuzu. Qualquer uma destas divindades podia ser convocada por um médico para afastar demônios malignos, aplacar fantasmas furiosos, revogar sua escolha de enviar a doença ou gerar energias curativas.
Tratamentos
Os tratamentos prescritos geralmente combinam alguma aplicação prática da medicina com um feitiço para torná-la mais eficaz. Por exemplo, um rato torrado no fundo de um recipiente de leite era considerado uma cura para a tosse severa, mas um rato no leite ingerido após recitar um encantamento funcionaria melhor. As mães amarrariam a mão esquerda de seus filhos com um pano santificado e pendurariam imagens e amuletos do deus Bes no ambiente para proteção, mas elas também recitariam o Encanto Para Proteção de Uma Criança, o qual afastaria os espíritos malignos.
Da mesma época há uma série de prescrições que não fazem menção a encantamentos mágicos. No Papiro de Ebers (c. 1550 a.C.), uma prescrição de contracepção descreve: “triturar finamente uma medida de tâmaras e um pouco de mel. Umedeça a lã ainda com sementes com a mistura e insira na vagina” (Lewis, 112). O Papiro de Edwin Smith (c. 1600 a.C.) descreve tratamento cirúrgico de lesões, sendo o tratado cirúrgico mais antigo conhecido no mundo. Embora existam oito encantamentos mágicos escritos no verso do papiro, estes são considerados pela maioria dos estudiosos como tendo sido acrescentados posteriormente, uma vez que o papiro foi frequentemente reutilizado por diferentes autores.
O Papiro de Edwin Smith é o mais conhecido para procedimentos práticos de tratamento de ferimentos, mas há outros que oferecem o mesmo tipo de aconselhamentos para doenças ou problemas de pele. Alguns deles eram obviamente ineficazes – como o tratamento de doenças oculares com sangue de morcego – mas outros parecem ter sido funcionais. A cirurgia invasiva nunca foi muito praticada, simplesmente porque os cirurgiões egípcios não a consideravam eficaz. A egiptóloga Helen Strudwick explica:
Devido aos limitados conhecimentos de anatomia, a cirurgia não progredia além de um nível elementar, não sendo realizada nenhuma cirurgia interna. A maior parte dos instrumentos médicos encontrados nos túmulos ou representados nos relevos dos templos eram utilizados para tratamento de ferimentos ou fraturas, os quais eram, possivelmente, resultantes de acidentes sofridos pelos trabalhadores nos sítios das construções monumentais dos faraós. Outros instrumentos eram utilizados para problemas ginecológicos e para o parto, sendo amplamente discutidos nos papiros médicos. (454)
O Papiro Ginecológico de Kahun (c. 1800 a.C.) é o documento mais antigo a abordar a saúde da mulher. Embora sejam mencionados encantamentos, muitas das prescrições relacionam-se à administração de medicamentos ou misturas sem assistência sobrenatural, como descrito abaixo:
Exame de uma mulher acamada, que não se estica quando se treme,
Deve-se dizer: "É aperto do útero".
Deve-se tratar o problema fazendo-a beber 7 litros de beberagem e fazendo-a vomitar de imediato. (Coluna II, 5-7)
Esta passagem em particular ilustra o problema da tradução de textos médicos egípcios antigos, uma vez que não é claro o significado exato de “não se estica quando se treme” ou “aperto do útero”, sendo que não se sabe nem mesmo qual era a beberagem. É frequentemente o caso das prescrições em que uma determinada erva, elemento natural ou mistura é presumido como de conhecimento geral, não necessitando de mais explicações. A cerveja e o mel (as vezes o vinho) eram as bebidas mais comuns prescritas para serem ingeridas com medicamentos. Por vezes, a mistura é cuidadosamente descrita, inclusive com a dose, mas, em outras ocasiões, é presumido que o médico saberia o que fazer, sem ser-lhe informado.
Conclusão
Como referido, os médicos do antigo Egito eram considerados os melhores do seu tempo, sendo frequentemente consultados e citados por médicos de outras nações. A escola de medicina de Alexandria era lendária, sendo que os grandes médicos das gerações posteriores deviam o seu sucesso ao que aprenderam nessa escola. Atualmente, pode parecer pitoresco, ou mesmo tolo, que as pessoas acreditem que um encantamento mágico recitado sobre um copo de cerveja possa curar qualquer coisa, mas essa prática parece ter funcionado bem para os egípcios.
É perfeitamente possível, como sugeriram vários estudiosos, que o sucesso do médico egípcio possa se resumir ao efeito placebo: as pessoas acreditavam que as suas prescrições funcionariam e assim acontecia. Uma vez que os deuses eram um aspecto tão presente na vida egípcia, a sua presença na cura ou prevenção de doenças não era um grande salto de fé. Os deuses dos egípcios não viviam nos céus distantes - embora certamente também estivessem por lá – mas também na terra, no rio, nas árvores, ao longo da estrada, no templo do centro da cidade, no horizonte, ao meio-dia, ao pôr do sol, ao longo da vida e até à morte. Quando se considera a estreita relação que os antigos egípcios tinham com os seus deuses, não é surpreendente encontrar elementos sobrenaturais nas suas práticas médicas mais comuns.