Na antiga Mesopotâmia, os deuses influenciavam todos os aspectos da vida diária, incluindo a prática da medicina. Gula, a deusa suméria da cura, regia as artes médicas, orientando médicos e dentistas no tratamento de problemas de saúde - geralmente atribuídos a causas sobrenaturais -, por mais de 2.000 anos. Muitos aspectos da medicina mais tarde associados à Grécia tiveram seu início na Mesopotâmia.
No entanto, Gula (também conhecida como Ninkarrak e Ninisinna) não era a única responsável pela saúde e cura, pois tinha a assistência da família, incluindo o consorte Pabilsag (também um juiz divino), o filhos Damu e Ninazu e a filha Gunurra. O bastão entrelaçado com serpentes, a insígnia da profissão médica nos dias atuais, originou-se de seu filho Ninazu, que estava associado a serpentes, transformação, submundo e cura.
Os médicos na Mesopotâmia atuavam simplesmente como agentes, através dos quais as divindades agiam para manter a saúde das pessoas, e seriam descritos nos dias atuais como clínicos gerais, especialistas, cirurgiões, dentistas, curandeiros e terapeutas. O médico, seja qual fosse a denominação, contava-se entre as profissões mais instruídas da Mesopotâmia, sempre mencionado com muito respeito.
Os médicos precisavam inicialmente estudar para se tornarem escribas, depois se especializavam em tratados médicos e, finalmente, concentravam-se na sua atividade específica. Aprender a escrita cuneiforme e dominar o currículo da escola de escribas levava de 10 a 12 anos, pelo menos, antes que alguém pudesse se dedicar totalmente ao estudo da medicina. Uma vez reconhecido como doutores, no entanto, os médicos da Mesopotâmia geralmente viviam vidas muito confortáveis.
A Medicina e os Deuses
A principal função dos médicos naquela época, como agora, era curar as pessoas de doenças e mantê-las em boa saúde. O primeiro passo no tratamento de uma pessoa doente consistia em diagnosticar a causa da doença (assim como ocorre atualmente), quase sempre atribuída a um pecado cometido pelo paciente, consciente ou inconscientemente. O estudioso Jean Bottéro escreve:
Toda infração em relação a uma norma qualquer — "interditos" imemoriais; imperativos dos costumes; prescrições implícitas das leis ou explícitas das autoridades - tornava-se uma ofensa ao domínio dos deuses, uma "falta" contra eles, um "pecado". E assim como os soberanos corrigem tudo o que desafia sua autoridade, cabia aos deuses, por meio de castigos adequados, reprimir tais desordens. Esses castigos eram os males e os infortúnios da existência, não mais infligidos pelos demônios por um mero capricho [como se pensava anteriormente], mas, daí por diante, segundo as ordens dos deuses. (168)
Mencionava-se a doença como "a mão de...", a exemplo das frases "o paciente é tocado pela mão do deus Shamash" ou "a mão do demônio Lamashtu está sobre ela" ou, então, a mão deste ou daquele fantasma infeliz. Seja qual fosse a enfermidade apresentada pelo paciente e a cura final, o diagnóstico sempre fazia referência à vontade dos deuses e sua intervenção nos assuntos humanos. A doença, então, igualava-se ao pecado, e a cura exigia alguma tipo de confissão e o compromisso de fazer melhor no futuro.
Mesmo assim, era perfeitamente possível que uma pessoa doente fizesse tudo certo, que os médicos realizassem todos os encantamentos corretamente e aplicassem os medicamentos adequados e, ainda assim, o paciente morresse. Mesmo que um deus pretendesse apenas o melhor para a pessoa doente, outro deus poderia ter se ofendido e se recusasse a ser aplacado, independente das oferendas. Para complicar ainda mais a situação, também era preciso considerar que talvez não fossem os deuses os responsáveis, mas sim um fantasma, a quem os deuses permitiam causar o problema para corrigir algum erro. O estudioso Robert D. Biggs comenta:
Os mortos – especialmente parentes mortos – também podiam incomodar os vivos, especialmente se as obrigações familiares de fornecer oferendas aos mortos fossem negligenciadas. Especialmente propensos a voltar para atormentar os vivos eram os fantasmas de pessoas vítimas de mortes não naturais ou não devidamente sepultadas – por exemplo, mortes por afogamento ou no campo de batalha. (4)
Textos médicos da Biblioteca de Assurbanipal (r. 668-627 a.C.) deixam claro, no entanto, que os médicos dispunham de uma quantidade impressionante de conhecimentos especializados e os aplicavam regularmente para cuidar de seus pacientes e apaziguar os deuses e os espíritos dos mortos. Antes da descoberta, no século XIX, de antigas inscrições mesopotâmicas, como as encontradas em Nínive e Mari, os acadêmicos acreditavam que os mesopotâmicos não tinham médicos por causa do relato feito pelo historiador grego Heródoto (v. c. 484-425/413 a.C.) em suas Histórias:
Porque eles não consultam médicos, quando alguém está doente, eles o levam para a praça principal, onde qualquer pessoa que tenha experiência pessoal de algo semelhante ao que a pessoa doente está sofrendo, ou que conheça outra pessoa que tenha, vem até ele e oferece conselhos e sugestões sobre aquela moléstia. Eles contam qual remédio que acharam mais eficaz em seu próprio caso, ou o que viram funcionando no caso de outra pessoa e que lhes permitiu se recuperar de uma doença semelhante. (I.197; Waterfield, 87)
Embora esse costume possa ter sido observado em partes da Mesopotâmia no tempo de Heródoto, certamente isso não ocorreu durante a maior parte da história da região, e é provável que Heródoto estivesse transmitindo informações de segunda mão. A profissão médica estava bem estabelecida na antiga Mesopotâmia no Antigo Período Babilônico (2000-1600 a.C.).
Asu e Asipu
Havia dois tipos principais de médicos ao longo da história da Mesopotâmia:
- asu (médico que tratava a doença ou lesão empiricamente)
- asipu (curandeiro que confiava no que poderíamos chamar de 'magia')
Havia também cirurgiões (que parecem ser provenientes de qualquer um destes backgrounds médicos) e veterinários (que também poderiam ser asu ou asipu). A odontologia era praticada pelos dois tipos de médicos, e ambos também podem ter atuado em partos, embora seu papel neles não seja claro. É possível que o asipu recitasse orações aos deuses ou cantos para afastar demônios (mais notavelmente o demônio Lamashtu, que matava ou levava os bebês) ou que o asu pudesse ter aliviado as dores do parto com ervas, mas não auxiliado no nascimento em si, que ficava a cargo de uma parteira.
As mulheres grávidas ou em trabalho de parto usavam amuletos especiais para proteger seu feto de Lamashtu e invocar o demônio Pazuzu, que servia como entidade protetora; da mesma forma que prejudicava, Pazuzu também protegia, e ele aparece com frequência nos encantamentos dos asipu. Embora os acadêmicos modernos às vezes se refiram ao asipu como "feiticeiro médico" e ao asu como "praticante da medicina", os mesopotâmicos consideravam os dois com igual respeito. Biggs observa:
Não há indícios nos textos antigos de que uma abordagem fosse mais legítima do que a outra. De fato, os dois tipos de curadores parecem ter tido igual legitimidade, a julgar por frases como 'se nem a medicina nem a magia trazem a cura', que ocorrem várias vezes nos textos médicos. (1)
A diferença significativa entre os dois tipos era que o asipu dependia mais explicitamente de encantamentos e orações sobrenaturais, enquanto o asu lidava mais diretamente com a parte física, através de bálsamos e fitoterápicos. Ambos os tipos de curadores teriam aceitado a fonte sobrenatural para a doença, no entanto, e o asu não deve ser considerado mais "moderno" do que o asipu.
O Médico em Ação
Os dois tipos operavam nos templos, onde tratavam os pacientes, mas também faziam frequentes atendimentos domiciliares. A cidade de Isin abrigava o centro de culto da deusa Gula e acredita-se (embora isso não esteja comprovado) que Isin servia como um polo de treinamento para médicos, que partiam então para os templos de outras cidades conforme a necessidade. Não há evidências de prática particular por si mesma, embora os reis e os mais abastados tivessem seus próprios médicos.
Mulheres e homens podiam exercer a profissão, embora, como observa Bottéro, "as mulheres escribas ou copistas, exorcistas ou especializadas em previsão dedutiva [asipu e asu] podiam ser contadas nos dedos de uma das mãos" (117). Parece que havia mais médicas durante o Período Dinástico Inicial da Suméria (2900-2334 a.C.) do que em épocas posteriores, e que as mulheres na antiga Mesopotâmia, de maneira geral, tenham desempenhado um papel mais expressivo na medicina antes do Período Acadiano (2334-2218 a.C.) e da propagação da ideia de que as mulheres fossem menos capazes do que os homens.
Dos textos antigos, sabe-se que os doutores raspavam suas cabeças (em alguns períodos, somente do lado esquerdo), como forma de identificação profissional. A partir do Hino a Gula (c. 1400 a.C.), sabemos que os doutores percorriam suas cidades diariamente e levavam com eles suas ferramentas de ofício. Uma parte do hino diz o seguinte:
Sou um médico, posso curar
Levo comigo todas as ervas curativas, mando a doença embora
Estou equipado com a bolsa de couro contendo encantamentos para a saúde
Carrego comigo textos que trazem recuperação
Curo a humanidade.
Meus curativos puros aliviam os ferimentos
Minhas bandagens suaves aliviam os doentes.
(Biggs, 10)
Os médicos dos dois tipos, mas principalmente o asu, também faziam uso de camas. A acadêmica Emily K. Teall observa:
Uma lista pormenorizada dos equipamentos dos médicos detalham a cama e cobertas, instrumentos cirúrgicos e outras aparelhagens médicas [...] Os pacientes seriamente doentes eram examinados e tratados na cama, a qual também podia servir como mesa de operação. Uma coberta podia ser utilizada na fase de recuperação pós-operação. (2)
Não está claro se isso significa que os médicos carregavam uma cama portátil com eles ou simplesmente usavam as camas dos próprios pacientes. Os mesopotâmicos reconheciam a associação da doença com a falta de limpeza (embora não conhecessem os germes tal como nos dias atuais) e, como as pessoas mais pobres das cidades dormiam em esteiras, no chão de terra, fazia sentido que uma pessoa doente ficasse numa cama.
Tratamentos e Prescrições
As taxas pelos serviços variavam de acordo com o status social do cliente. Um médico que supervisionava o nascimento de um nobre recebia mais do que por um parto comum, costume observado muito antes do Código de Hamurabi (c. 1772 a.C.) sistematizar a prática médica. O preço das receitas também variava e, embora um médico pudesse ser pago em ouro por preparar um remédio para um príncipe, o mesmo serviço para uma pessoa comum renderia talvez uma tigela de sopa ou uma xícara de barro. Não há evidências, no entanto, de que os médicos hesitassem em tratar os pobres e as mesmas prescrições, com os mesmos ingredientes, valiam para todos, sem levar em conta o status social.
Os medicamentos eram geralmente moídos pelo médico, que recitava encantamentos durante o processo, na presença do paciente. Uma receita da Babilônia para uma lesão no rosto consiste no seguinte:
Se um homem estiver doente com uma ferida na bochecha, junte óleo de abeto, óleo de pinheiro, tamargueira, margarida, farinha de Inninnu; misture no leite e na cerveja em uma pequena panela de cobre; espalhe na pele, cubra e ele se recuperará. (Teall, 4-5)
Antissépticos eram feitos a partir de uma mistura de álcool, mel e mirra e a cirurgia estava mais avançada do que em outras regiões da época (Teall, 5). Teall informa: "No tratamento de todas as feridas, existiam três etapas críticas: lavar, aplicar um curativo e cobrir a ferida" (6). Os mesopotâmicos entendiam que lavar uma ferida com água limpa e certificar-se de que as mãos do médico também estavam limpas impedia a infecção e acelerava a cicatrização. As mãos e as feridas eram limpas com uma mistura de cerveja e água quente, embora, como observa Teall, "o sabão líquido já estivesse disponível" (6).
Dentistas e Terapeutas Sexuais
Biggs observa que "temos poucas evidências para a prática da odontologia como tal" (7), mas havia práticas odontológicas na Suméria no Período Uruk (4100-2900 a.C.). Pensava-se que a dor de dente seria causada por um "verme dentário" que, após sua criação pelos deuses, recusava toda forma de alimento, exceto o sangue das gengivas. O dentista recitava o encantamento do verme dentário e, em seguida, administrava o tratamento adequado - administração de ervas ou retirada do dente -, pois os deuses eram chamados para atingir o verme dentário e expulsá-lo do paciente. Este parece ter sido um procedimento padrão e eficaz, já que era praticado de forma consistente.
Os médicos também tratavam problemas gastrointestinais, infecções do trato urinário, problemas de pele, doenças cardíacas e mentais. Havia também ginecologistas especializados na saúde feminina, incluindo abortos. Biggs observa:
Há um texto que aparentemente traz prescrições para abortar um feto. A linha relevante diz: "para fazer com que uma mulher grávida deixe o feto cair". As receitas consistem em oito ingredientes, que deviam ser administrados à mulher no vinho e bebidos com o estômago vazio. A seção termina com as palavras: "essa mulher vai deixar cair o feto". (9)
Ele também observa que "o asipu era uma espécie de terapeuta sexual. Há uma coleção especial de textos conhecidos por seu nome sumério, SA ZI GA [...], literalmente 'levantamento do coração', onde 'coração' parece ser um eufemismo para pênis" (15). Tais textos também lidam com problemas de fertilidade feminina, mas parecem focados principalmente na potência sexual masculina e na excitação das mulheres.
Existe até um teste de gravidez mencionado nos textos médicos, segundo o qual certas ervas eram usadas por uma mulher em suas roupas íntimas, que absorveriam as secreções vaginais e mudariam de cor se estivesse grávida. Havia também práticas que garantiam a fertilidade, dias ideais durante os quais as mulheres tinham maior probabilidade de conceber e outras para aumentar o desejo sexual feminino após o parto.
Medicina e Magia
Os médicos não eram responsabilizados caso esses procedimentos não funcionassem. Como os deuses atuavam tanto na causa direta da doença quanto como agentes curativos, o médico só poderia ser responsabilizado pelo que fazia ou não na administração dos tratamentos. Se o procedimento ocorresse precisamente como escrito, o médico teria desempenhado seu papel corretamente, mesmo que o paciente não se curasse.
A única exceção a essa regra dizia respeito à cirurgia: se a operação falhasse, o médico poderia ter a mão (ou ambas as mãos) amputada, conforme observado pelo artigo 218 do Código de Hamurabi. As cirurgias eram realizadas desde o Período Uruk, embora os cirurgiões da Mesopotâmia não tivessem conhecimento de fisiologia ou anatomia, uma vez que se proibia a dissecação de cadáveres humanos por motivos religiosos.
Embora os médicos compreendessem a importância de medir o pulso dos pacientes para determinar seu estado de saúde e reconhecessem o valor dos antissépticos e da limpeza, eles nunca conseguiram relacionar o pulso ao sistema circulatório, nem entenderam completamente a sujeira como origem de germes infecciosos. Como se pensava que a doença provinha de interferência sobrenatural, os médicos sempre confiavam, em maior ou menor grau, nos tratamentos que envolviam o que se reconheceria nos dias atuais como 'astrologia' e 'adivinhação', especialmente a importância dos presságios.
Isso pode ser constatado em certos textos médicos, conhecidos como a série dos presságios, escritos ao longo de muitos séculos, que deixam claro que o sucesso de um asipu poderia se basear naquilo que o médico observava no caminho da casa do paciente:
Se o exorcista vê um cachorro preto ou um porco preto, o homem doente morrerá. Se o exorcista vê um porco branco, o homem doente viverá. Se o exorcista vê porcos que ficam levantando o rabo, quanto ao homem doente, a ansiedade não se aproximará dele. (Nemet-Nejat, 79-80)
Acompanhando essas previsões, há outras que descrevem certas doenças e sintomas e afirmam como, com base no que se observa, o paciente viverá ou morrerá. Neste aspecto, consideram-se também os sonhos e visões do paciente:
Se, quando sofria de uma longa doença, ele viu um cachorro, sua doença retornará; ele morrerá. Se, quando sofria de uma longa doença, ele viu uma gazela, esse paciente se recuperará. Se, quando sofria de uma longa doença, ele viu um porco selvagem quando você recitou um encantamento, ele se recuperará. (Nemet-Nejat, 81)
Ao mesmo tempo em que essas práticas 'mágicas' vigoravam, no entanto, havia também o uso contínuo de diagnósticos baseados na observação empírica e na aplicação prática de tratamento e conduta padronizados. O exemplo mais famoso desse comportamento encontra-se numa carta de Zimri-Lim, rei de Mari, para sua esposa, a respeito de uma mulher da corte chamada Nanna, que sofria de alguma doença transmissível. O rei instrui sua esposa a manter Nanna longe dos demais na corte porque sua doença é contagiosa. Esse conceito de contágio nunca se relacionava à disseminação de germes, no entanto; em vez disso, concluiu-se que Nanna cometera algum pecado que a deixara doente e que, pela proximidade com a pessoa doente, os deuses poderiam permitir que a moléstia se espalhasse para outros.
Conclusão
Caberia aos egípcios enfatizar a observação empírica e aplicar o que se chamaria de procedimentos "modernos" na medicina. Do Egito, a prática médica veio para a Grécia e foi codificada por Hipócrates (v. c. 460-370 a.C.), conhecido como "o pai da medicina ocidental". Biggs observa:
Existem alguns paralelos entre a medicina da Mesopotâmia e a medicina realizada na Grécia antiga, mas não parece que a medicina grega (em contraste com áreas do conhecimento como a matemática e a astronomia) fosse de alguma forma derivada da medicina mesopotâmica. (17)
Mesmo assim, as práticas dos mesopotâmicos certamente influenciaram os egípcios, de quem os gregos receberam sua compreensão da prática médica e dos cuidados gerais de saúde. Teall escreve:
Mais de mil anos antes da vida e do ensino de Hipócrates, antes da descrição da aquisição e tratamento de feridas na Ilíada [...] a medicina na Mesopotâmia pré-1000 a.C. era uma profissão bem estabelecida, que incluía diagnóstico, aplicações farmacêuticas e o tratamento adequado de feridas. (7)
É notável que o bastão com serpentes entrelaçadas, símbolo da profissão médica nos dias modernos, esteja associado a Hipócrates e aos gregos quando, na verdade, como a própria prática médica, originou-se na Mesopotâmia.