Ferenice (v. c. 388 a.C., também conhecida como Calipateira) foi uma atleta de Rodes que, por ser mulher, não podia competir nos Jogos Olímpicos e, como uma mulher casada, sequer podia assisti-los. Desafiando estas regras e se arriscando à pena de morte, ela se disfarçou como homem e treinou seu filho para a vitória.
Ferenice [forma arcaica de Berenice] era filha de Diágoras de Rodes (v. século V a.C.), um atleta famoso, e seus irmãos também foram campeões olímpicos. Como uma jovem donzela, Ferenice teria permissão de participar dos Jogos Herenos (dedicados à deusa Hera) e assistir aos Jogos Olímpicos de uma área separada dos espectadores masculinos, mas mulheres casadas não podiam assistir ou mesmo ficar nas proximidades de onde eram realizadas competições olímpicas, sob risco de morte.
O marido de Ferenice, que treinava seus filhos, morreu subitamente, porém, e ela assumiu como treinadora do filho, Peisirodos, no boxe. O historiador Pausânias (v. 110-180 d.C.), entre outros autores antigos, relata a história de como, quando ela foi apanhada em flagrante nos jogos e trazida perante os juízes, explicou quem era e por que tinha feito o que fizera. Eles a libertaram sem punição mas, dali por diante, todos os treinadores passaram a entrar no estádio despidos para comprovar que eram homens.
As Mulheres na Grécia Antiga
Fora dos limites de Esparta, as mulheres na Grécia tinham poucos direitos. Suas vidas estavam sob o controle dos homens da família, primeiro o pai, depois o marido e, se ela sobrevivesse a ambos, um filho adulto ou sobrinho. Houve certamente mulheres que buscaram meios de afirmar sua individualidade, como Safo de Lesbos, Telesila de Argos ou Agnodice de Atenas mas, em termos gerais, para viver de forma independente e controlar suas próprias vidas e finanças elas tinham a única opção de se transformar numa hetaira, uma cortesã de alta classe, como no caso de Aspásia de Mileto. Há evidência de mulheres de classes mais humildes trabalhando como artesãs e vendendo artigos para outras mulheres numa seção segregada da ágora ateniense mas, em sua maior parte, elas permaneciam dentro de casa, em seus próprios aposentos que, pelo menos em Atenas, podiam até ser trancados para impedir o acesso externo.
Restringiam-se as vidas femininas desta forma porque se acreditava que possuíam escassa força de vontade e perseguiriam seus desejos a qualquer custo. Eram consideradas selvagens por natureza e somente “domadas” pelo matrimônio, que permitiria ao marido controlar seus caprichos e compulsões. Aristóteles comenta:
Animais domesticados têm uma natureza melhor do que os selvagens, e todos os animais domesticados estão melhores quando pertencem a um homem; pois isso os preserva. Novamente, o macho é por natureza superior e a fêmea inferior; e um manda e a outra obedece; este princípio, pela necessidade, estende-se a toda a humanidade. (Política, 1254b2)
Mulheres de todas as idades, casadas ou solteiras, participavam de festivais religiosos e, de fato, esperava-se que o fizessem, mas este era o único aspecto da vida pública no qual se permitia sua participação ativa. A cada outono, as mulheres casadas celebravam o Festival das Tesmofórias, em honra a Deméter e Perséfone, e as atenienses do culto desempenhavam um importante papel no Festival Panateneico, anualmente, e na Grande Panateneia, a cada quatro anos.
Ao longo do ano havia vários festivais e jogos homenageando as deusas gregas com a participação feminina, mas existem poucos detalhes a respeito destes eventos. Pausânias, no entanto, oferece um relato dos Jogos Heranos, restritos a jovens donzelas solteiras, supervisionadas por mulheres casadas e mais velhas.
A cada quatro anos, dezesseis mulheres vestiam o manto de Hera e realizavam os jogos heranos. As competições consistiam de corridas a pé. As atletas não eram todas do mesmo grupo etário, mas as mais jovens corriam primeiro, em seguida o grupo mais velho e finalmente as de mais idade entre as competidoras. Elas corriam da seguinte forma: os cabelos ficavam soltos. As túnicas desciam até pouco acima do joelho e elas deixavam seu ombro direito desnudo acima do peito. O estádio de Olímpia ficava disponível para elas, mas a extensão da pista era de cerca de um sexto da dos homens. As vencedoras recebiam coroas de oliveira e uma parte da vaca sacrificada a Hera, e os organizadores erguiam estátuas com seus nomes inscritos. (Grécia, 5.16.2-4.G, Lefkowitz & Fant, 277)
Pausânias alega que os Jogos Heranos eram muito antigos, mas atualmente acredita-se que começaram por volta de 580 a.C., quando as Olimpíadas já eram um evento tradicional, como um festival religioso do qual as mulheres poderiam participar e também atlético, pois elas não tinham permissão de competir nos Jogos Olímpicos. O exclusivamente feminino Herano aconteciam a cada quatro anos, pouco antes da competição masculina. As solteiras que participavam tinham permissão de assistir aos competidores masculinos de sua seção própria da plateia no estádio de Olímpia. Exigia-se, porém, que as mulheres casadas deixassem o estádio e voltassem para casa, sob pena de morte em caso de descumprimento.
As Mulheres e os Jogos Olímpicos
As casadas não tinham permissão de assistir às competições masculinas com a mesma justificativa pela qual eram estritamente controladas em outras áreas da vida: careciam de autocontrole e iriam em busca da satisfação de seus desejos caso se sentissem atraídas por um jovem atleta despido. A acadêmica Robin Waterfield comenta:
Mulheres casadas, com exceção das sacerdotisas locais de Deméter, não tinham permissão de comparecer aos jogos, mas as solteiras podiam. Uma vez que era comum que as mulheres de casassem por volta dos treze ou quatorze anos, tratava-se de uma restrição bastante severa. Talvez não faça muito sentido impedir mulheres casadas em vez de solteiras de ver homens despidos, mas esta é apenas outra ocasião em que os costumes gregos confundem a mente moderna. De qualquer forma, a proibição das mulheres diz mais sobre as atitudes gregas em relação a elas do que qualquer senso de modéstia ou o seu oposto. Além disso, muitos atletas tinham cerca de 25 anos, próximos da idade do casamento, e os pais das jovens - bem como as próprias - aproveitavam a oportunidade para escolher possíveis futuros maridos. (13)
Não está claro porque os atletas competiam despidos mas, de acordo com os autores antigos, os motivos seriam a liberdade de movimentos (correr mais rápido e saltar mais longe sem a sobrecarga da tanga); homenagem a Zeus (a quem os jogos eram dedicados); prevenção de acidentes (após um corredor tropeçar na tanga que caiu); ou, simplesmente, porque estavam acostumados, já que treinavam desta forma nos ginásios. Conforme Dionísio de Halicarnasso (v. século I a.C.), os atletas não competiam despidos até 720 a.C., bem depois das Olimpíadas terem iniciado e até esta data usavam tangas.
As Olimpíadas começaram em 776 a.C. e aconteceriam regularmente a cada quatro anos até seu final, determinado pelo imperador romano Teodósio I (r. 379-395 d.C.), em 393. De acordo com a lenda, foram instituídos pelo próprio Zeus, após ter derrotado seu pai Cronos e os Titãs, embora haja outras histórias relativas à origem da competição, incluindo a que estabelece seu início como jogos funerários. Uma destas histórias dá conta de que o Rei Ifito de Élida, uma cidade ao norte de Olímpia, frustrado pelo constante estado de guerra entre as cidades-estado gregas, pediu ao Oráculo de Delfos uma orientação sobre o que fazer. O Oráculo disse-lhe para instituir os jogos e declarar uma trégua por toda a Grécia até que a competição terminasse. Waterfield comenta:
Para permitir que os atletas e visitantes viajassem com segurança de seus lares até Olímpia, havia uma trégua sagrada. Com bastante antecedência, arautos viajavam por todos os cantos do mundo grego anunciando a data precisa dos jogos e a extensão da trégua correspondente. Esta data já era mais ou menos conhecida, desde que a competição acontecia a cada quatro anos, sempre no final do verão, com o principal dia dos jogos caindo na segunda lua cheia após o solstício de verão. (4-5)
Os atletas e seus treinadores, bem como espectadores, viajavam de todos os cantos do mundo grego até a cidade de Élida. Dois dias antes dos jogos, os competidores, técnicos e funcionários percorriam a pé os 60 quilômetros que separavam Élida de Olímpia, numa procissão que se detinha periodicamente para sacrifícios a Zeus e outras divindades. Inicialmente, o único evento era a stade (stadion), uma corrida a pé pela extensão do Estádio Olímpico mas, com o tempo, outras competições foram incluídas, como pentathalon [pentatlo], que reunia salto a distância, lançamento de disco, arremesso de lança, corrida e luta; outras corridas a pé; pankration [pancrácio], uma combinação de boxe e luta livre; corridas de bigas e de cavalos; luta livre e boxe. Não havia segundos ou terceiros lugares; os vencedores eram considerados superiores aos demais e homenageados tanto nos jogos quanto na terra natal.
A Família de Ferenice
A família de Ferenice estava entre aquelas homenageadas por conquistas atléticas excepcionais. Seu pai era Diágoras de Rodes, um famoso lutador de boxe que venceu competições nos Jogos Ístmicos (quatro vezes), nos Jogos Nemeus e nos Jogos Olímpicos (duas vezes em cada um) e nos Jogos Pítios (uma vez). Ele treinou seus três filhos no boxe e os dois mais velhos, Damagetos e Akousilaos, venceram nos Jogos Olímpicos em duas diferentes categorias (pankration e boxe, respectivamente) em 448 a.C.. Há uma famosa estátua em Rodes que representa os dois irmãos carregando seu pai numa volta triunfal.
Diágoras também treinou seu caçula, Dorieu, outro campeão olímpico, e provavelmente fez o mesmo, ou ao menos encorajou o atletismo, em sua filha Ferenice. O poeta Píndaro (v. c. 518-c. 438 a.C.) exalta Diágoras como um homem justo, que afastou a arrogância e a injustiça, na sua Ode Olímpica VII. Ainda que fosse da classe dominante de Rodes, que poderia ter mantido as tradições gregas em relação às mulheres, ele se tornou célebre ao incluir seus filhos em seu próprio renome, treinando-os como campeões, e estaria de acordo com seu caráter fazer o mesmo por suas filhas.
Ferenice, a Treinadora
Ferenice (cujo nome significa “ela que traz a vitória”) provavelmente competiu nos Jogos Heranos quando era mais nova e torceu por seus irmãos. Uma vez casada, ela pode ter presidido os Jogos Heranos e então ter retornado a Rodes ou, talvez, para Élida para aguardar o fim das Olimpíadas e então voltar para casa com a família. Pausânias descreve a penalidade para mulheres casadas flagradas assistindo aos jogos:
Quando você vai de Escilo ao longo da estrada para Olímpia, antes de cruzar o Alfeio, há uma montanha com despenhadeiros elevados e íngremes. É chamado Monte Tipeu. Uma lei de Élida determina que mulheres devem ser atiradas dali caso sejam flagradas nos jogos olímpicos, ou mesmo no outro lado do Alfeio, nos dias proibidos a elas. Porém, eles afirmam que nenhuma mulher jamais foi flagrada, com exceção de Calipateira, ainda que alguns lhe deem o nome de Ferenice e não de Calipateira. (Grécia, 5.6.7)
Parece haver certa confusão sobre a existência de duas filhas ou apenas uma conhecida por dois nomes diferentes, pois alguns autores antigos se referem a duas e outros a uma. É possível que houvesse outra filha, Calipateira, mas parece mais provável que houvesse uma, conhecida como Ferenice e que, após o evento, passou a ser chamada de Calipateira. A mais conhecida versão da história parece sugerir que havia apenas uma filha, Ferenice, casada com um atleta (possivelmente chamado Calianax, um boxeador, que teria sido treinado pelo sogro, embora isso seja especulação). Acredita-se que o casamento resultou em dois filhos, Eucles e Peisirodos (embora Eucles possa ter sido seu sobrinho, filho de Calipateira, se ela existiu). Eucles venceu a competição de boxe nas Olimpaídas em 404 a.C. e, poucos anos depois, Peisirodos preparava-se para os jogos quando o pai faleceu subitamente.
Ferenice assumiu o treinamento do jovem e o preparou para os jogos. Ela o acompanhou até Élida, disfarçada como um homem, caminhou na procissão até Olímpia e conta-se que estava na seção destinada aos treinadores quando o filho venceu a disputa de boxe em 388 a.C.. Tomada pelo orgulho pelo desempenho do filho, ela pulou o muro baixo que separava os treinadores dos competidores, abrindo sua túnica e revelando seu gênero. Ela foi trazida perante os jurados, aos quais lembrou a ilustre história da família nos jogos e explicou os motivos de seu ato. Por causa disso, uma nova lei foi aprovada, porém, estabelecendo que todos os treinadores, dali por diante, teriam de entrar no estádio despidos para deixar claro que eram homens.
Conclusão
Pausânias descreve o evento imediatamente após discorrer sobre a punição que esperava as mulheres que desafiavam a lei e compareciam aos jogos.
Ela, sendo uma viúva, disfarçou-se exatamente como um treinador de atletismo e trouxe seu filho para competir em Olímpia. Peisirodos, como seu filho era chamado, foi vitorioso e Calipateira pulou para fora da área cercada dos treinadores, expondo sua pessoa. Assim seu sexo foi descoberto, mas eles a deixaram sem punição por respeito ao pai, irmãos e ao filho, todos vitoriosos em Olímpia. Mas uma lei foi aprovada que, no futuro, treinadores deveriam despir-se antes de entrar na arena. (5.6.8)
Pausânias realmente visitou o estádio olímpico e a área circundante, o que não se pode dizer, com certeza, dos historiadores que registraram a história de Ferenice posteriormente. Filóstrato (v. c. 170-250 d.C.) também faz um relato em sua obra Gymnasticus (c. 220 d.C.), uma coleção de histórias e anedotas sobre atletas e os Jogos Olímpicos.
Os eleanos [habitantes de Élide] contam sobre uma mulher chamada Ferenice, cuja aparência física eram tal que eles pensaram que se tratava de um homem. Em Olímpia, ela cobriu-se com o manto dos treinadores e treinou seu filho Peisirodos. Quando os eleanos souberam do truque, eles hesitaram em executar Ferenice por causa de sua admiração por Diágoras e suas crianças. Eles aprovaram uma lei, porém, segundo a qual, dali por diante, os treinadores deveriam tirar suas roupas. (17)
O historiador Aélio (v. c. 175-c. 235 d.C.) preservou o relato na obra Varia Historia (Várias Histórias) mas acrescenta uma conclusão nova, não suportada pelos outros relatos:
Os funcionários se recusaram a admitir Ferenice como uma espectadora, mas ela falou em público e justificou seu pedido argumentando que seu pai e três irmãos eram campeões olímpicos. Ela conquistou a assembleia, a lei excluindo as mulheres foi suspensa e ela compareceu ao festival olímpico. (10.1)
Talvez Aélio tenha pretendido dizer que a lei excluindo as mulheres foi suspensa exclusivamente para Ferenice naquele dia ou naquela Olimpíada, pois não há registro de que uma decisão dessa natureza nos jogos em 388 a.C..
Atualmente, vários autores concluem a história de Ferenice com a alegação de que, após sua história ter sido conhecida, ela passou a ser denominada como Calipateira, nome traduzido por alguns autores como "Senhora Bom Pai". Não se sabe de onde esta alegação se origina entre os autores antigos. É possível, conforme observado, que houvesse uma irmã chamada Calipateira ("Aquela do bom pai") e autores antigos tenham confundido qual das filhas de Diágoras compareceu às Olimpíadas como um treinador. Mas também é possível que os dois nomes se refiram a uma mulher que, após os acontecimentos, passasse a ser conhecida como um "bom pai" para seu filho ao se arriscar tanto para treiná-lo adequadamente.
Seja como for, Ferenice tornou-se famosa por colocar sua vida em risco para o sucesso do filho e a reputação de sua família, ideais altamente valorizados pelos gregos. Suas ações e a habilidade evidente como treinadora deveriam ter encorajado os homens a questionarem suas políticas referentes às mulheres e às Olimpíadas, especialmente levando-se em conta que Ferenice encenou sua quebra de protocolo somente quatro anos depois após Cinisca de Esparta (b. c. 442 a.C.) tornar-se a primeira mulher a vencer a corrida de bigas olímpica por duas vezes, a primeira em 396 depois em 392 a.C.. Em vez disso, eles optaram por instituir uma nova lei que deixava claro que todos os treinadores eram homens. A história de Ferenice transformou-se em pouco mais do que uma interessante anedota olímpica transmitida por autores posteriores - até os tempos modernos, quando a história da treinadora Senhora Bom Pai ficou mais conhecida e amplamente apreciada.