Heráclito: A vida é fluxo

Artigo

Joshua J. Mark
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 15 outubro 2020
Disponível noutras línguas: Inglês, francês, italiano, espanhol, Turco
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Heráclito de Éfeso (v. c. 500 a.C.) afirmou, de maneira célebre, que "a vida é fluxo" e, embora pareça ter acreditado que essa observação seria evidente para todos, as pessoas continuaram a resistir ao conceito de mudança desde sua época até os dias atuais. Heráclito foi um dos primeiros filósofos pré-socráticos, assim denominados porque designam aqueles que viveram antes de Sócrates, considerado o Pai da Filosofia Ocidental. Os pré-socráticos iniciais concentravam-se em identificar a Primeira Causa da criação - o elemento ou energia que teria colocado toda a criação em movimento e a sustentava - e ficaram conhecidos como "filósofos naturais" porque interessavam-se nas causas naturais para os fenômenos anteriormente considerados sobrenaturais e explicados pela vontade dos deuses.

Heraclitus of Ephesus
Heráclito de Éfeso
Wellcome Images (CC BY)

Seu contemporâneo oriental, Sidarta Gautama (Buda, v. c. 563 - c. 483 a.C.), reconheceu este mesmo aspecto essencial da vida: que nada era permanente e o mundo observável estava em constante estado de mudança e, assim, percebeu o que causava o sofrimento humano: as pessoas insistiam na permanência num mundo de impermanência. Buda estimulava as pessoas a aceitarem a natureza essencial da vida e a se desapegarem da falsa ideia de que qualquer coisa que tivessem podia ser permanente. Heráclito tinha a mesma mensagem, mas com uma diferença significativa: era possível apegar-se a qualquer coisa, compreendendo, porém, que se tratava de algo passageiro.

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A diferença entre os dois filósofos é que Heráclito estimulava o engajamento ativo, enquanto Buda sugeria um desinteresse esclarecido. Buda ensinava o caminho do desapego gradual à mutabilidade do mundo, que levaria à compreensão e reconhecimento de que se poderia viver plenamente sem o desejo daquilo que não se tinha, o temor do que se poderia perder e a lamentação sobre o passado. Heráclito estimulava as pessoas a abraçar a mudança como a essência fundamental da vida, vivê-la e celebrá-la, com a total consciência de que aquilo que se tinha poderia ser eventualmente perdido.

Embora seu foco central seja diferente, o objetivo é o mesmo: despertar aqueles que se apegam ao que sabem através do medo e da ignorância e permitir seu movimento em direção a uma compreensão mais elevada e vibrante da vida. Curiosamente, embora não tão surpreendente, esse mesmo foco seria desenvolvido no século XX pelo icônico psiquiatra suíço Carl Jung (v. 1875-1961), que enfatizou a importância do processo de autorrealização - comparável ao estado de consciência encorajado por Heráclito e Buda - pelo qual se deixariam de lado os medos e limitações infantis com vistas a uma vida mais gratificante e madura.

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A Filosofia de Heráclito

Heráclito parece ter escrito uma série de obras importantes, das quais restaram apenas fragmentos preservados por autores posteriores. O interesse dos primeiros pré-socráticos em identificar a Causa Primeira começou com Tales de Mileto (v. c. 585 a.C.) e continuou através de seu aluno Anaximandro (v. c. 610-546 a.C.) e depois Anaxímenes (v. c. 546 a.C.), todos os quais inspiraram filósofos posteriores, a exemplo de Heráclito.

Heráclito afirmou que toda a vida, e a própria natureza da vida, era mudança e transformação, incorporadas e ilustradas pela energia do fogo.

Tales identificou a Causa Primeira como a água, que podia assumir vários estados - aquecida, tornava-se ar (vapor); congelada, tornava-se sólida (gelo); e assim por diante. Anaximandro rejeitou esta afirmação e declarou que a Causa Primeira tinha que ser uma força cósmica (que ele chamou de apeiron), muito além de qualquer um dos elementos terrestres, porque sua essência precisava integrar todos os elementos da criação. Anaxímenes sugeriu o ar como o elemento fundamental porque, como a água de Tales, podia assumir diferentes formas, como fogo (quando rarefeito), água (por condensação), além de sustentar a vida.

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Todas essas três alegações reconheciam a mudança como aspecto essencial da Causa Primeira. Mesmo assim, Heráclito rejeitou todos as três como insuficientes porque, segundo lhe parecia, careciam de uma qualidade observável e transformadora; a água, o apeiron e o ar podiam iniciar a transformação, mas não completá-la. Em vez disso, ele afirmou que a Causa Primeira era o fogo - uma energia transformadora - porque toda a vida, e a própria natureza da vida, consistia na mudança e transformação incorporadas e ilustradas pela energia do fogo. O fogo transformava a carne crua em alimento cozido, o ar frio em quente, a madeira em cinzas, a escuridão em luz e, portanto, claramente era a Primeira Causa.

Conta-se que Heráclito nasceu de uma família aristocrática de Éfeso mas, seja isso verdade ou não, ele parece ter mantido uma atitude de superioridade em relação aos demais ao longo da vida. Acredita-se que sua filosofia se desenvolveu a partir desta atitude, já que o filósofo tinha a crença de que a maior parte das pessoas com as quais se encontrava estava num nível inferior ao seu e, de fato, intelectual e espiritualmente adormecidas. Pode ser, porém, que Heráclito fosse simplesmente um astuto observador da condição humana e tenha reconhecido que a maioria se achava, de fato, adormecida em sua vida - como costumava dizer - sujeitando seus julgamentos à opinião popular e traindo seus sonhos para atender ao interesse alheio. Ele parece ter formulado sua filosofia de maneira a despertar as pessoas, forçando-as a confrontar sua preguiça espiritual e letargia emocional.

Heraclitus of Ephesos
Heráclito de Éfeso
Johannes Moreelse (CC BY-SA)

Não está claro, devido ao seu fraseado e os poucos fragmentos restantes de seus escritos, em que consistia sua filosofia, além da afirmação de que a vida consiste na mudança constante, mas parece que ele defendia a completa consciência sobre a existência simplesmente ao se prestar atenção e permanecer crítico às definições pessoais ou declarações de verdades dos demais. O filósofo criticava regularmente seus colegas e escritores anteriores, duvidava das opiniões dos profissionais de qualquer área e acreditava saber melhor como percorrer seu caminho na vida.

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Tornou-se provavelmente mais conhecido por uma afirmação com frequência mal citada: "Você não pode entrar no mesmo rio duas vezes", que pode ser traduzida diretamente como "no mesmo rio podemos entrar e não entrar, estar e não estar" (Baird, 20). O que Heráclito quer dizer é que o mundo está num constante estado de mudança e, ainda que se possa caminhar das margens para o leito de um rio já percorrido anteriormente, as águas que fluem sobre seus pés nunca serão as mesmas que corriam um momento antes. Da mesma forma, momento a momento, a vida está num constante estado de mudança e, em sua opinião, nunca se pode contar com a certeza de entrar no mesmo aposento de uma casa numa ocasião e em outra.

A Filosofia de Buda

De acordo com a tradição budista, Sidarta Gautama era um príncipe hindu e, logo após seu nascimento, um sábio profetizou que ele cresceria e se tornaria um grande rei ou uma poderosa figura espiritual. Seu pai, monarca do reino de Kapilavastu [território que compreende atualmente parte do Nepal e da Índia], queria um sucessor e, assim, tentou afastar seu filho de qualquer amostra de sofrimento humano que pudesse conduzi-lo ao caminho espiritual. Os planos do pai falharam, no entanto, uma vez que Sidarta se tornou consciente da doença, velhice e morte. Ele renunciou ao trono e abraçou uma vida de ascetismo espiritual e, com o tempo, obteve a iluminação e se tornou Buda.

Em seu estado iluminado, ele percebeu, como Heráclito, que a vida é fluxo e que a maioria da humanidade não percebia essa realidade. As pessoas sofriam constantemente, ele entendeu, porque sempre almejavam os aspectos mais prazerosos da vida como permanentes, ainda que sua real natureza fosse volátil. As pessoas queriam manter seus seres amados, empregos, bens e lares como se fossem durar para sempre, quando não havia meios, devido à natureza das coisas, de que isso pudesse acontecer. Ele defendia a aceitação do que chamou de Quatro Nobres Verdades (que estabeleciam que a vida é sofrimento causado pelo desejo) e o caminho do desapego - o Nobre Caminho Óctuplo -, uma disciplina espiritual que permitia o desapego gradual da ignorância que mantém as pessoas cativas à ilusão de permanência na vida.

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The Great Buddha of Kamakura
O Grande Buda de Kamakura
James Blake Wiener (CC BY-NC-SA)

Uma significativa semelhança entre a filosofia de Buda e a de Heráclito era que este último não defendia tal desapego, mas visava ao mesmo objetivo. Para Heráclito, era possível abraçar plenamente todos os aspectos mutáveis da vida e desfrutá-los plenamente, desde que se compreendesse seu caráter efêmero. Da mesma forma, Buda ensinava a seus adeptos que podiam desfrutar de tudo o que quisessem na vida, desde que percebessem seu aspecto efêmero e isento de significado permanente.

A vida é fluxo

Ao fazer sua famosa declaração sobre o rio, Heráclito estava simplesmente ilustrando a verdade básica de que a vida está em constante fluxo, conforme expresso em sua famosa frase Panta Rhei (“tudo muda” ou “a vida é fluxo”). Heráclito sustentava que a mudança representa a própria natureza da vida; não se trata de um mero aspecto dela, mas sua essência, e resistir à mudança significa resistir à vida. Ele também afirmou que havia uma força natural, associada ao fogo transformador, que movia todas as coisas em rápida sucessão, de acordo com sua natureza, o que ficou conhecido como logos.

O logos, que infunde todas as coisas, opera naturalmente como "mudança", mas os humanos resistem a esse fluxo natural e sofrem devido à ignorância.

O logos (termo grego para "palavra"), que infunde todas as coisas - mas não cria o mundo nem pode conduzi-lo a seu fim -, opera naturalmente como "mudança", mas os humanos resistem a esse fluxo natural e, por causa disso, sofrem e causam sofrimento a outros devido ao desconhecimento sobre a natureza da vida. Heráclito escreveu: "Para o Logos todas as coisas são belas, boas e justas, mas os homens supõem que algumas coisas são injustas, outras são justas" (DK 22A32).

À luz da consciência, afirmou Heráclito, todas as coisas são boas porque são naturais (um conceito que influenciaria o desenvolvimento posterior do estoicismo, assim como o conceito do logos). As pessoas nasciam, viviam e morriam, e, após falecerem, seus entes queridos lamentavam e chamavam o evento de tragédia, mas, para Heráclito, tratava-se simplesmente da progressão da vida e uma parte natural da condição humana. A tristeza e a luta que acompanhavam a morte eram, em sua opinião, parte da operação natural do logos, porque ele definia conflito e discórdia como agentes transformadores.

A vida é conflito

Para Heráclito, o conflito é necessário para a perpetuação da vida. Ele critica Homero (v. 8° século a.C.) que escreveu: "se essa luta entre deuses e homens pudesse perecer" (Ilíada 18.107) porque, se isso acontecesse, não haveria oportunidade para mudança e crescimento. Não se pode crescer sem algum esforço em busca de algum tipo de objetivo, e o conflito faz parte deste processo. De fato, o filósofo via o conflito como uma força vital para a manutenção do mundo:

Devemos reconhecer que a guerra é comum, a luta é justiça e todas as coisas acontecem de acordo com a discórdia e a necessidade. (DK22B80)

A guerra é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ela revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos, de outros homens livres. (DK22B53)

Heráclito rejeitava o conceito de Anaximandro do apeiron como uma força punitiva, criadora e destruidora, por causa da conotação negativa da punição. Para ele, o conflito dos opostos é absolutamente essencial para a continuação da vida, conforme se pode perceber na mudança das estações, na noite se transformando em dia, nos jovens envelhecendo e até mesmo na vida dando lugar à morte. Tudo se encontra em constante movimento, observou Heráclito, e bastava reconhecer e aceitar esse fato para viver de acordo com esta realidade. Buda reconheceu isso com a mesma clareza e, à sua maneira, ambos os filósofos defendiam formas compassivas de aceitação e vida num mundo em constante mudança, mesmo que o maior desejo seja a permanência.

Heráclito e Jung

Carl Jung ecoa as ideias de ambos os filósofos em várias de suas obras, que enfatizam a importância vital de aceitar a mudança como possibilidade transformadora. Jung reconheceu que as pessoas temem a mudança devido ao receio do desconhecido, o que inclui o temor da perda e do abandono. Nesse aspecto de seu pensamento, como em outros, ele se baseou no antigo entendimento de pensadores como Heráclito, Buda e vários outros.

Carl Gustav Jung
Carl Gustav Jung
Adrian Michael (Public Domain)

Jung afirmava que as pessoas temiam a mudança, em especial, porque desejavam evitar o tipo de conflito associado ao crescimento. Em seu ensaio Os Estágios da Vida, ele escreve:

Cada um de nós se afasta de bom grado de seus problemas; se possível, eles não devem ser mencionados, ou, melhor ainda, sua existência é negada. Desejamos tornar nossas vidas simples, certas e suaves e, por isso, os problemas são tabu. Queremos ter certezas e não dúvidas - resultados e não experimentos - sem sequer perceber que tais certezas podem emergir somente através da dúvida e os resultados aparecem através de experimentos. (Campbell, 5)

Jung achava que as neuroses humanas nasciam do desejo individual de permanecer num estado infantil e que parte disso aparecia na fuga diante dos conflitos:

Alguma coisa em nós quer permanecer uma criança, ser inconsciente ou, na maioria dos casos, consciente apenas do ego, para rejeitar tudo o que parece estranho; ou então submetê-lo à nossa vontade; não fazer nada ou, então, entregar-se à nossa própria ânsia por prazer ou poder. (Campbell, 9-10)

Nem Buda nem Heráclito, é claro, expressaram seus conceitos da mesma forma, mas ambos parecem ter entendido bem a tendência humana para se apegar ao passado e se recusar a abandonar aquilo que já se conhece e com o qual está acostumado. Essa atitude, afirmam ambos, só provoca mais sofrimento, resultante da recusa de abandonar aquilo que, para começar, jamais se teve a garantia de manter.

Conclusão

Naturalmente, Buda e Heráclito não são os únicos filósofos antigos que reconheceram que a vida é passageira e mutável. A brevidade da vida, de fato, está presente no próprio conceito de filosofia em todas as culturas do mundo. No entanto, ao se considerar os pontos de vista de dois dos maiores pensadores do antigo Oriente e Ocidente, juntamente com um psiquiatra moderno, podemos reconhecer a continuidade da experiência humana.

Todos os três defendem a aceitação da vida como ela é, enquanto alertam contra respostas fáceis ou fugas confortáveis que buscam evitar o sofrimento sem reconhecer suas causas. Heráclito referiu-se a esse estado como sonambulismo através da vida; Buda o definiu como ignorância subjacente; e Jung o identificou como o desejo de permanecer numa condição infantil, na qual não se assumem riscos porque nenhum é esperado. Ao escolher permanecer adormecido, ignorante ou infantil, procura-se resolver os problemas de conflito e sofrimento, mas, como observa Jung, essa escolha apenas sufoca o indivíduo:

Os problemas sérios da vida não são totalmente solucionados. Se eles, de alguma forma, parecem tê-lo sido, é um sinal claro de que algo foi perdido. (Campbell, 11)

O que Jung sugere aqui é uma perda de possibilidades transformadoras ao se apegar ao conhecido, em vez de deixá-lo de lado e acompanhar as correntes da vida. Enquanto houver o apego a entendimentos passados e tradições pessoais ou culturais de como as coisas devem ser mantidas, não será possível experimentar o tipo de crescimento que vem com a mudança e que, de fato, define todas as coisas vivas, à medida que se transformam através dos vários estágios da vida, independente do nosso consentimento. Com isso, ele está simplesmente afirmando para a era moderna o que Buda e Heráclito reconheceram há mais de 2.000 anos - que a vida é fluxo.

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Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Joshua J. Mark
Joshua J. Mark é cofundador e diretor de conteúdos da World History Encyclopedia. Anteriormente, foi professor no Marist College (NY), onde lecionou história, filosofia, literatura e redação. Ele viajou bastante e morou na Grécia e na Alemanha.

Citar este trabalho

Estilo APA

Mark, J. J. (2020, outubro 15). Heráclito: A vida é fluxo [Heraclitus: Life Is Flux]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Recuperado de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-75/heraclito-a-vida-e-fluxo/

Estilo Chicago

Mark, Joshua J.. "Heráclito: A vida é fluxo." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação outubro 15, 2020. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-75/heraclito-a-vida-e-fluxo/.

Estilo MLA

Mark, Joshua J.. "Heráclito: A vida é fluxo." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 15 out 2020. Web. 30 jan 2025.